Viver

Nelson Melo, artista plástico: “Há sempre uma faísca que nos diz que está tudo bem e faz sentido”

28 jul 2016 00:00

Nos montes, onde brincava, apanhava o barro com que aprendeu a moldar. “Passava tardes a transformar o barro em formas reconhecíveis, para desfazer e transformar a matéria-prima em coisas irreconhecíveis. Aquilo marcou-me como artista", recorda.

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Jacinto Silva Duro

Em Pedaços de Montanha, exposição que assina com Sandrine Cordeiro e está patente na Arquivo Livraria, em Leiria, a criação de memórias também está presente, como acontece noutros seus trabalhos?
Não tenho a certeza...Toda a nossa cultura é criada porque há memória. Não se cria do nada, mas a partir de uma plataforma firme que só existe devido à memória. Nesse sentido mais lato, os Pedaços de Montanha trabalham também a partir da memória. Directamente, não foi uma directriz para a criação do projecto.

É impossível a um indivíduo, ou sequer à espécie humana, desde a sua origem, ter memórias do que acontece a uma montanha. Vivemos em escalas temporais diferentes.
Interessa-me essa impossibilidade de, durante o nosso tempo de vida, acompanharmos esses eventos. Interessa-me esse lado "vertiginoso" de uma escala que nos escapa e foge completamente. É uma vertigem mortal que nos faz cair num buraco negro, quando nos pomos a imaginar esse percurso da montanha e da crusta terrestre. Não há norte-sul, este-oeste, cima-baixo, frio-quente. É a sensação que sinto quando falo de montanha. A Humanidade jamais entenderá esse outro tempo e espaço, embora haja o ponto de contacto que é o presente e este fascínio poético de observação e pensamento. É nesta pequena faísca que há uma aproximação a todo este tempo que não conseguimos agarrar ou sequer compreender. Há sempre uma faísca que nos diz que está tudo bem e faz sentido. Todas as pedras são pedaços de montanhas e o Pedaço de Montanha é uma pedra e uma evocação a essa escala temporal que não conseguimos abarcar. As pedras da exposição são bustos esculpidos pelo tempo. Foi assim que eu e a Sandrine resolvemos chamar-lhes. Têm caras que não são reconhecíveis, porque as suas personagens também não foram reconhecidas pela história. Não têm identidade. Em relação à memória, não sei o que pensar. É mais ou menos como quando me perguntam o que é a arte contemporânea.

Sendo um homem do norte, como apareceu Leiria na sua vida?
Foi um convite familiar, há quatro anos. Fui para a Praia da Vieira, trabalhar na área da restauração, por convite do meu irmão que abriu lá um espaço, o Café Café. Trabalhava em Serralves, na parte de montagem de exposições, embora o meu grande interesse sempre tenha sido o serviço educativo. Trabalhei também no museu José Guimarães, durante o período da Capital Europeia da Cultura. Adoro aparafusar e montar as mostras, mas também adoro a parte mais conceptual, de contacto com as pessoas que não têm tanta abertura para a arte contemporânea. Interessa-me essa coisa de elas, no âmbito dessa forma de arte, entrarem no vazio, perante uma peça, que nada tem de reconhecível. Sinto-me útil nessas situações, onde posso ser a ponte e o gatilho para iniciar o processo de conhecimento. Resumindo, estava a ser complicado trabalhar a recibos verdes para várias instituições que, por lei, tinham 90 dias para pagar, quando o meu senhorio não me dava esse prazo. Aquela instabilidade financeira fez-me pensar que seria capaz de desenvolver o meu lado criativo e desempenhar uma função paralela que me desse dinheiro. Aceitei o desafio do meu irmão.

Continuou a desenvolver-se criativamente?
Já conhecia alguma pessoas em Leiria. As minhas referências eram a Lara Portela, que conheci quando estudávamos na ESAD.CR, e João Pedro dos Santos, que tinha sido meu professor, é o actual director da ESAD.CR e um dos elementos da Direcção da Associação Célula & Membrana - colectivo a9)))). Comecei por montar uma exposição no a9)))), como ponto de fuga da minha criação. A convite da Lara, comecei a trabalhar no projecto Fabião - Positivos-Negativos -, que me alimentou a criatividade.

Perfil
O artista que moldava barro

Há 33 anos nasceu em Paredes, mas viveu em Paço de Sousa, no concelho de Penafiel, até ao ensino superior. "Paço de Sousa é a minha vila e há-de ser sempre. As grandes referências da localidade são a Casa do Gaiato e o mosteiro milenar que guarda o jazigo de Egas Moniz, braço direito de D. Afonso Henriques."

A partir de 2002, estudou Artes Plásticas, na Escola Superior de Artes e Design, de Caldas da Rainha, depois, fez um estágio no INOV-Art, nos Estados Unidos, trabalhou em Serralves e na Guimarães, Capital Europeia da Cultura.

Actualmente, em conjunto com Sandrine Cordeiro, tem patente a exposição Pedaços de Montanha, na Arquivo Livraria, em Leiria, e assina com Lara Portela, no JORNAL DE LEIRIA, a rubrica Arquivologias, criada a partir do projecto Positivo-Negativo, espólio de Fotografia Fabião.

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