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Paulo Kellerman, Joaquim Ruivo e João Paulo Silva, promotores do livro 'Contos Imperfeitos': “O simples mortal está condenado a ser imperfeito”
Depois da apresentação no auditório do Mosteiro da Batalha, sábado passado, Contos Imperfeitos será dado a conhecer em Leiria, na Arquivo Livraria, a 5 de Março
Afonso Cruz escreve no seu conto que as capelas imperfeitas são perfeitas na sua imperfeição, pois permitem ao visitante o vislumbre da mais perfeita das concepções do arquitecto celestial: o firmamento. Os Homens estão condenados a escrever apenas “contos imperfeitos”?
Joaquim Ruivo: Sim. A perfeição é inatingível. É um dom de Deus e o simples mortal está condenado a ser imperfeito, e é nisso que reside também a sua condição de mortal.
João Paulo Silva:Concordo. Acho que é mais interessante ler um conto imperfeito do que imaginar o que poderá ser um conto perfeito. Não consigo imaginar que possa existir. Portanto, acho que o desafio foi atingido. Aqui os contos são todos imperfeitos, mas perfeitos.
Paulo Kellerman:Conhecendo as capelas imperfeitas e lendo o conto de Afonso Cruz é impossível não ficar com uma nova imagem delas. Uma das grandes mais-valias deste livro é permitir dar novas visões de uma coisa que, em princípio, já toda a gente conhece. Quanto à perfeição, provavelmente se as capelas imperfeitas estivessem acabadas seriam menos perfeitas. Tal como os contos ou qualquer criação humana. O objectivo pode ser atingir uma qualquer possibilidade de perfeição, sabendo que isso é impossível. O desafio está em tentar, tentar e tentar. E nunca conseguir.
Nos 20 escritores há alguns dos nomes mais conhecidos das letras nacionais. Foi simples conquistar pessoas como Afonso Cruz, Cláudia Clemente, Inês Fonseca Santos ou Paulo Moreiras? O que foi que lhes prometeram?
Paulo Kellerman:Foi espantosamente simples. No início, achámos que ia correr muito bem e ser um projecto agradável e interessante para todos. Mas o momento em que percebemos que ia efectivamente ser assim foi quando lançámos os convites. Fizemos 22, considerando que queríamos ter 12 ou 14 contos, porque se calhar não iríamos conseguir mais. Mas a verdade é que tivemos logo 19 pessoas, umas a responder no próprio dia, outras no dia seguinte. Não foi preciso prometer nada, foi apenas necessário explicar o que se pretendia e desafiar as pessoas. Para minha surpresa, aceitaram logo com grande entusiasmo. Foi uma surpresa agradável e a prova de que aquilo que nós sentíamos que ia ser um projecto interessante não iria sê-lo só para nós.
João Paulo Silva: Isto é uma prova da capacidade de mobilização do mosteiro enquanto marca.
Deram liberdade total aos escritores?
Paulo Kellerman: Sim. O mosteiro convidou todos os escritores para estarem cá [no mosteiro] durante um fim-desemana. Estiveram 18 em simultâneo, outros dois vieram mais tarde. A ideia era apresentar vertentes diferentes do monumento, porque praticamente toda a gente tinha a mesma perspectiva do mosteiro, que era a resultante das visitas da escola em garotos. Vimos várias perspectivas e depois cada um foi para o seu canto e fez exactamente o que entendeu.
Joaquim Ruivo: A única imposição foi mesmo que o mosteiro servisse de pretexto. De resto, foi dada liberdade criativa total. Só assim faria sentido, porque cada escritor é único, tem a sua forma de escrever.
Tiveram surpresas?
Paulo Kellerman: Os convites foram feitos com cuidado, não foi uma coisa ao acaso. Já sabíamos com o que iríamos contar. É evidente que as pessoas não só levaram isto a sério, como se desafiaram e se superaram. Apesar de já conhecer o trabalho das pessoas, tive agradáveis surpresas.
João Paulo Silva: A diversidade de abordagens está bem patente no livro, são universos muito diferentes.
João Paulo, o seu conto é um burilar de palavras destinado a reconstituir os momentos finais do mestre Afonso Domingues, ao mesmo tempo que descreve a luta que aquele teve com David Huguet. De uma assentada, liga as imagens dos toscos leões, desmitifica a lenda da abóbada e cria um conflito entre dois dos grandes “pais” do mosteiro. Como surgiu a ideia para As penas de pavão?
Foi o fim-de-semana a tocar e a olhar para as pedras centenárias? Por acaso não. Passei esse tempo a tentar inspirar-me e depois entrei em pânico porque não havia nenhuma ideia que me agradasse. Comecei a fazer umas pesquisas e às páginas tantas estava a ler um livro relacionado com o mosteiro e vi uma nota de rodapé que me levou a outro livro, que por sua vez tinha uma referência a um artigo publicado num jornal de Lisboa de mil novecentos e troca o passo. Havia lá uma pessoa que falava sobre aquelas figuras e sobre uma possível interpretação delas. Abordava a questão de poder haver alguma inveja entre os dois arquitectos e eu pensei: é por aqui. Depois, de alguma forma, foi brincar um bocadinho à volta da lenda de Alexandre Herculano e fazer uma coisa diferente.
Paulo Kellerman, afinal as almas do seu Zumbido, sentem ou não?
Não sei como é com as outras pessoas, mas eu escrevo as coisas e depois esqueço. Já não tenho grande noção do que escrevi. Lembro-me que Zumbido me diz qualquer coisa e tem a ver com o conto que escrevi. Mas sinceramente não me lembro bem o que se passava. Neste projecto, felizmente tive o prazer de andar entretido com uma série de coisas de organização e só depois de perceber que estava tudo no bom caminho é que comecei a pensar em dedicar-me à escrita. E o processo foi exactamente o mesmo de sempre: ir apontando ideias soltas nos cadernos, até chegar a altura em que pego neles e construo qualquer coisa. O que me lembro deste conto é que é relativamente provocador em relação ao mosteiro. Não sei se ele passava se eu não tivesse responsabilidades de coordenação! Mas gosto dessa dimensão de desafio, de provocar desassossego em quem lê. Tentei fazer isto com este conto.
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