Sociedade
Presidente e clube “Os Nazarenos” vão ser julgados por tráfico de pessoas
Segundo a acusação, em algumas situações houve "necessidade de dormirem, pelo menos, três pessoas por cama”, no sofá e até no chão
O presidente do Grupo Desportivo “Os Nazarenos”, o clube e mais dois arguidos vão ser julgados em Leiria por 17 crimes de tráfico de pessoas, dois dos quais agravados, e 17 crimes de auxílio à imigração ilegal.
O despacho de acusação, de Fevereiro e agora consultado pela agência Lusa, refere que o presidente do clube, João Zarro, foi abordado, entre Março e Abril de 2018, pelos dois arguidos, estrangeiros, que se apresentaram “como empresários da área do futebol”, tendo todos gizado um plano para “obter proventos económicos através do aliciamento de jogadores de futebol de nacionalidade brasileira e peruana que pretendessem jogar futebol, a nível profissional, na Europa”.
Segundo o Ministério Público (MP), os dois empresários abordaram jogadores naqueles países, “prometendo-lhes boas condições de trabalho, de alojamento, de alimentação”, assim como o tratamento das questões logísticas da transferência internacional e a legalização em Portugal, “a assinatura de um contrato de trabalho e um bom salário, com a promessa de uma transferência para outros clubes de maior importância a nível nacional e internacional”.
Na concretização do plano, os arguidos procediam, também, à inscrição dos jogadores no clube da Nazaré, pelo qual jogariam.
Para facilitar a operação de aliciamento e credibilizar a transferência dos jogadores, os dois empresários apresentaram-se como sócios-gerentes de uma sociedade de agenciamento de jogadores nunca registada. Através dessa sociedade, celebraram um acordo com o clube, através do seu presidente, válido para a época 2018/2019.
O MP adianta que o presidente e os dois agentes providenciaram “pela elaboração de contratos de trabalho e de promessas de contratos de trabalho”, para dar aparência de legalidade, documentos necessários para instruir os “pedidos de concessão excecional de autorização de residência” no país. Foi também elaborada uma carta-convite em nome de “Os Nazarenos”, para atestar no controlo de fronteira aérea a regularidade e permanência em Portugal dos jogadores.
O despacho pormenoriza como cada um de 17 jogadores (dois então menores de idade) foi aliciado, os valores despendidos para virem para Portugal, como chegaram até à Nazaré, onde e como ficaram instalados, e o dinheiro que receberam por jogar no clube (um deles terá recebido apenas 20 euros por pelo menos oito jogos; alguns não terão recebido nada).
De acordo com o documento, aqueles ficaram em apartamentos e ainda no Centro de Alto Rendimento de Surf da Nazaré e no Estádio Municipal, exemplificando que nos primeiros houve “necessidade de dormirem, pelo menos, três pessoas por cama”, no sofá e até no chão.
Quanto à alimentação fornecida pelos empresários, era disponibilizada de “forma esporádica”, sem qualidade e em quantidade insuficiente, “levando a que estes perdessem peso e se sentissem fracos”, notando que em diversas ocasiões passaram fome.
O MP diz que todos os arguidos “atuaram sempre de comum acordo e em comunhão de esforços” para obterem “vantagens patrimoniais”, numa quantia sempre superior a cinco mil euros.
No despacho lê-se que os arguidos obrigaram os ofendidos a jogar futebol, “privando-os da sua liberdade ao não lhes atribuírem qualquer quantia económica”, visando o “lucro fácil” à custa do trabalho daqueles, e sabiam que, ao não darem alimentação e habitação condigna, não diligenciarem pela sua legalização e que ao não proporcionarem rendimento deixavam os jogadores incapazes de resistir, de se opor ou de se sustentar, “ficando na total dependência” dos acusados.
O caso foi tornado público em março de 2019 pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que desencadeou uma operação na qual fez buscas, tendo detido os empresários e constituído arguidos o presidente e o clube.
Então, em comunicado, “Os Nazarenos” fizeram saber que nem o clube, nem nenhum membro da sua direção, “fazem ou fizeram parte de um esquema” de tráfico de pessoas, nunca prometeram “fosse o que fosse a qualquer atleta estrangeiro” e nunca receberam, “dos atletas, dos seus familiares ou de quaisquer representantes seus, qualquer quantia monetária ou qualquer outro tipo de vantagem económica”.
Através do comunicado, aquele emblema dizia ainda que foi o clube e os seus dirigentes que “resgataram os atletas estrangeiros que foram, literalmente, abandonados pelos empresários”, tendo providenciado pelo seu sustento.
O julgamento, por um tribunal coletivo, ainda não está marcado.