Desporto
Presos por arames
Com a limitação da prática desportiva, os clubes têm passado por dificuldades, inimagináveis até há muito pouco tempo. Fazemos o relato do que têm sofrido cinco emblemas do concelho de Leiria
Substituem o Estado na promoção dos hábitos de vida saudável pelos mais jovens, mas estão absolutamente esquecidos e agrilhoados pelas dificuldades financeiras. São a base da prática desportiva no País, mas poucos se importam com o seu futuro. Sem mensalidades dos atletas e apoios das empresas, contam os tostões enquanto esperam que a pandemia passe.
O Grupo Desportivo e Recreativo da Boavista foi dos primeiros a tomar medidas para antecipar um eventual avolumar de problemas decorrentes da Covid-19. A época 2019/20 tinha terminado a meio, em Março. Apesar do optimismo generalizado e do abrandamento nos números da pandemia, logo em Agosto decidiram abdicar da equipa sénior de futebol para 2020/21. E em boa hora o fizeram, garante o presidente da Direcção.
“Levava-nos muito dinheiro ao final do mês e essa decisão revelou-se acertada, porque permitiu que o clube se aguentasse à tona de água”, explica André Gameiro. Pela primeira vez em quatro décadas, o GDR Boavista não tem equipa sénior, mas a decisão permitiu poupar 40 mil euros. Se assim não fosse, a situação “seria dramática”. “Permitiu reduzir a despesa para 40%”, sublinha o responsável.
“Será que os nossos jogadores vão regressar? Será que vamos voltar a ter o pavilhão cheio de crianças, de domingo a domingo?
Com a diminuição do quadro de atletas de 120 para 50, o clube reestruturou o número de treinadores, o que “permitiu economizar alguma coisa”. No entanto, como a maioria dos restantes, o emblema axadrezado também perdeu muita da receita em publicidade e donativos. “À volta de 90%”, aponta o responsável. “Felizmente temos alguns amigos, três ou quatro empresas que quiseram estar do nosso lado neste momento difícil e continuam a apoiar-nos.”
Mas “não há festas, que são uma ajuda importante” e também tiveram de “abdicar de uma parte” da mensalidade paga pelos pais. Não havendo actividade nem competição, não quiseram receber como se tudo decorresse normalmente. Mas se o Desporto federado em Portugal já estava ameaçado pela pandemia, a partir do último confinamento obrigatório tudo piorou. “Estamos fechados desde Dezembro. Tínhamos uma equipa a competir, os sub-21, que só fizeram um jogo. E como se motiva os miúdos para treinar se não há jogos e os treinos são à distância?”
Tempestade perfeita
Este é, também, um dos pontos que mais preocupa Pedro Dinis. “Têm sido tempos difíceis”, assegura o presidente do Sport Clube Leiria e Marrazes. “Tivemos uma redução do número de praticantes na casa dos 30%. Há uns que não vêm porque os pais têm receio - o que é normal apesar de cumprirmos todas as regras - outros não vêm pela falta de motivação decorrente do que é permitido nos treinos” e do facto de não haver jogos.
A incerteza, “o pára e não pára”, também fez aumentar a taxa de abandono. “Perde-se a rotina da prática de uma actividade física, os miúdos agarram-se a outros tipos de estímulos e é difícil voltarem se os pais não os obrigarem”, sublinha o responsável, preocupado com as consequências no bem-estar físico e psicológico das nossas crianças. “Há miúdos que não deverão voltar. O facto de não haver jogo é um problema à motivação dos miúdos. E eles precisam disto para o bem-estar físico e psicológico.”
E se dos pontos de vista desportivo e de saúde esta paragem já acarreta consequências graves, financeiramente também “é complicado”, porque as despesas mantêm-se e as receitas vão diminuindo.
“Se se pensar que temos menos atletas, menos receita, zero de bilheteira, bares e afins, e há redução nos patrocinadores, porque têm menor disponibilidade, diria que se forma a tempestade perfeita. A nossa sorte é que recorremos aos mecanismos de apoio, como o lay-off, não temos despesas fixas com empréstimos ou outros encargos financeiros e as despesas inerentes à actividade também não existem.”
Razia completa
Poucos quilómetros ao lado, a situação no Atlético Clube da Sismaria não é melhor. Belmiro Gante, presidente da comissão administrativa que lidera o clube de andebol, diz, até, que é “dramática e demolidora”.
“O apoio que temos do Estado é uma coisa muito pequena para o que gastamos. Virei-me para os patrocínios, para os apoios empresariais, mas este ano foi uma razia completa. Se conseguimos 5% do que tínhamos conseguido no ano anterior foi muito. Um dia dizem que sim, no dia seguinte já dizem que não. Pedimos 250 euros e não dão um cêntimo. Os que costumavam dar 500 deram 100. O que recebemos não dá para pagar metade da despesa de um mês”, clarifica o responsável.
Ainda assim, a maioria das mensalidades continua a ser paga pelos encarregados de educação. “Os treinadores vão dando apoio aos miúdos virtualmente e os pais vão compreendendo o nosso esforço, mas não temos forma de pedir alguma coisa que seja. Temos muitos atrasos e aos que não quiserem ajudar também não podemos dizer nada, porque está difícil para todos.”
Até aquelas festas e jantaradas que a Sismaria sabe organizar como ninguém se transformaram, naturalmente, em noites de silêncio. Na verdade, os sócios também pouco ajudam, desabafa Belmiro Gante. “Vejo-me aflito para receber quotas. A malta não quer pagar. Não há uma ajuda mínima, de um euro e meio por mês. Acham que a nossa nova sede está lá, que apareceu, mas não querem saber, são treinadores de bancada e pouco mais do que isso.” A situação é completamente desesperada. Se os clubes não desistirem são autênticos heróis.”
Em banho-maria
Talvez por isso, Carlos Gonçalves admita que o Bairro dos Anjos está em “modo de sobrevivência”. “Estamos completamente parados. A receita é zero e os encargos mantêm-se. Temos de continuar a pagar aos colaboradores, porque no lay-off há uma parte que o clube tem de suportar”, explica o vice-presidente.
Dos dois mil atletas que praticam natação no clube de Leiria, apenas têm recebido a mensalidade dos cerca de 50 que integram o grupo da competição, o que é “muito pouco” para a máquina pesada que já está instituída. “Fomos obrigados a fechar, primeiro de Março a Setembro e desde que o Governo decretou novo encerramento até agora. Mas quando abrimos estávamos a trabalhar a 20%, porque a autarquia não autorizava mais, devido às limitações impostas pela Direcção-Geral da Saúde.”
“Temos menos atletas, menos receita, zero de bilheteira e há redução nos patrocinadores. Diria que se formou a tempestade perfeita”
O clube tem feito “um esforço muito grande” para não despedir, mas há “algo de que ninguém fala”. “O Bairro dos Anjos tinha muitos colaboradores a recibos verdes, prestadores de serviços, que foram postos de lado. Gente que está a atravessar dificuldades, professores de hidroginástica, de natação ou de fitness, que teve de ir procurar emprego e anda a trabalhar a carregar coisas.” São à volta de 30.
Resta ficar “em banho-maria”, a aguentar. O dinheiro do PRO Leiria, regulamento municipal de apoio ao associativismo que chegará brevemente, servirá para “pagar ordenados” e “liquidar dívidas a fornecedores”. “Felizmente há moratórias no pagamento das viaturas”, conclui.
Três euros de caixa
A época também é tudo menos normal na Associação Desportiva e Recreativa dos Barreiros. Só os seniores começaram a competição distrital de futsal, enquanto juniores, juvenis, iniciados e infantis apenas treinavam. Já os mais novos - petizes, traquinas e benjamins - nem sequer arrancaram.
Mas isto foi até Dezembro, porque desde então estão “a zero”, “completamente parados”, garante Ana Rita Bento, presidente da Direcção. “Sobrevivíamos com a mensalidade paga pelos pais e com as receitas do bar do pavilhão. Neste momento, temos uma sede que está fechada há um ano. Só abrimos dois meses no Verão e foi um prejuízo terrível, porque as pessoas não iam. Fazíamos três euros de caixa por dia.”
Como se aguentam? “Pedimos um patrocínio aqui e acolá para pagar as despesas ou estamos a ir ao dinheiro que tínhamos de lado.”
Essa verba estava destinada a obras que a agremiação precisa de fazer para terminar uma parte do pavilhão, um “ginásio”, com o objectivo de “criar mais um espaço para rentabilizar”. Na verdade, a obra não vai deixar de avançar e até conta com o apoio da autarquia, mas a medida reflecte o “desespero” que tem assolado os clubes.
“Vejo-me aflito para receber quotas. A malta não quer pagar. Não há uma ajuda mínima, de um euro e meio por mês”
Nos Barreiros, a pandemia está a pôr em causa todos os investimentos feitos ao longo dos últimos tempos. “Conseguimos abrir um gabinete de fisioterapia, comprámos máquinas, temos de pagar esse material todo e neste momento não há retorno por causa da pandemia”, admite a responsável.
Na aldeia da freguesia de Amor, “envelhecida”, as pessoas “têm medo”. Logo, “não saem de casa”. Também há “muitas famílias carenciadas, com atletas a precisar de ajuda. A situação “piorou” com a Covid-19. “Nota-se bem a diferença. Há pais que não pagaram a mensalidade, mas sempre dissemos que não era por isso que deixavam de ir aos treinos.”
É, porém, a incerteza que mais incomoda Ana Rita Bento. “Será que os nossos jogadores – e tínhamos 110 atletas - vão regressar? Será que vamos voltar a ter o pavilhão cheio de crianças, de domingo a domingo? Não sei se as pessoas vão ter o mesmo espírito. É uma incógnita e uma tristeza muito grande. Acreditamos que conseguimos dar a volta e acho que ficamos de pé, mas é tudo muito complicado.”
Câmara de Leiria altera modo de apoio
Valorizando o “papel determinante” dos clubes no “fomento e desenvolvimento desportivo e estilo de vida saudável”, o Município de Leiria aprovou por unanimidade uma alteração aos critérios de apoio ao associativismo desportivo em 2021, “com o objectivo de ajudar estas entidades a superarem o impacto da pandemia Covid-19”. Assim, tendo em conta o número reduzido de atletas inscritos e da muito menor acção existente na actual temporada, o apoio à actividade federada regular através do PRO Leiria terá como base a média dos auxílios financeiros atribuídos nos últimos três anos.
André Gameiro, presidente do GDR Boavista, mostrou-se satisfeito com o papel da autarquia. “Foi sensível e arranjaram uma forma de continuar a apoiar os clubes que, a meu ver, foi a mais correcta.” Já Carlos Gonçalves, do Bairro dos Anjos, lamenta a inexistência de apoios por parte do Governo. Todos os clubes do País deviam ter sido vistos de outra maneira a nível nacional.”
Na semana passada, a Assembleia da República (AR) recomendou ao Governo a adopção de medidas que permitam a retoma desportiva e consequente normalização das competições, “incluindo as camadas mais jovens e de formação e o desporto para deficientes”.
Em comunicado, desafia, “com carácter de urgência”, a que a tutela faça uma “ampla auscultação das entidades nacionais do associativismo desportivo” para que, em conjunto com a Direcção-Geral da Saúde, possam “trabalhar as normas e condições para a prática desportiva”. De igual modo, pretende um “apoio ao movimento associativo desportivo” para que este contribua para a “retoma gradual e segura das suas actividades”.
Estima-se que neste momento, no País, 200 mil jovens estejam privados da prática desportiva. Manuel Nunes, presidente da Associação de Futebol de Leiria, acredita que 25% dos emblemas vão ter dificuldade em reabrir e pede que lhes seja dado apoio para não colapsarem.