Sociedade

“Quando se fala da guerra ignora-se o contexto de violência colonial”

7 out 2016 00:00

Miguel Cardina, investigador do Centro de Estudos Sociais, natural da Nazaré, diz que ainda hoje é “incómodo” e “estranho” abordar o “colonialismo como colonialismo".

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Maria Anabela Silva

Os seus interesses de investigação centram-se nas questões do colonialismo, do anti-colonialismo e da guerra colonial. O que leva um jovem, nascido já depois do 25 de Abril, a interessar- se por estas temáticas?

O meu percurso académico é um pouco sinuoso. Licenciei-me em Filosofia, fiz a tese de mestrado sobre o movimento estudantil em Portugal nos anos 60 e 70 e o doutoramento sobre a extrema esquerda no País nos finais da ditadura (1964/74).

A dado momento, apercebo-me que, para trabalhar o campo da história, precisava de aplicar alguns métodos, que me levariam a pensar sobre o que é a memória, sobre o modo como as pessoas reconstroem as suas história e os seus passados.

Quando dei por mim, estava no campo daquilo a que se chama os estudos da memória. Progressivamente, fui-me interessando pelas questões do anti-colonialismo, até porque no estudo do movimento estudantil e da extrema esquerda essa era uma questão central.

Depois, percebi que reflectir sobre o modo como se representa este passado implica pensarmos nos legados que permanecem em Portugal sobre aquilo que foi o nosso império colonial. Não falo só na dimensão do império, mas também na forma como foi feita a descolonização.

Bélgica, França e Inglaterra tinham começado esse processo antes de nós. Portugal descolonizou à bruta, através de uma guerra. E essa guerra e os efeitos dela é algo com que quase todos em Portugal nos confrontamos, mesmo não a tendo vivido de forma directa. Praticamente todos teremos um familiar, directo ou mais afastado, que fez a guerra ou que veio de África. Perto de 800 mil homens da metrópole participaram na guerra. Estamos a falar de quase 10% da população. E, a seguir ao 25 de Abril, cerca de 500 mil pessoas vieram para Portugal.

Vai agora poder dar continuidade à sua investigação através da bolsa Starting Grant, atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação no valor de 1,4 milhões de euros. O que o sentiu ao ver o projecto que lidera ser escolhido entre cerca de 3000 candidaturas?

Fiquei muito contente pelo prestígio do prémio, pelas condições que dá ao projecto e também pelo reconhecimento das ciências sociais e humanas, uma área onde Portugal tem ainda um percurso grande a fazer. Estamos a falar de uma bolsa com algum prestígio e, por isso, importante no desenvolvimento individual da carreira.

Mas, mais importante que isso, permite a constituição de uma equipa, que integrará seis elementos, e a investigação de um tema, de grande abrangência, com suporte de recurso humanos e financeiros.

Qual o objectivo da investigação?

Pretende-se fazer a história das memórias da guerra, abrangendo 40 anos e seis países: Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. Vamos olhar para a guerra não enquanto fenómeno histórico - evento que ocorreu entre 1961 e 1974/75 em três diferentes frentes -, mas como fenómeno mnemónico. Ou seja, perceber como é que esse evento se repercutiu no pós-guerra, como foi lembrado e como foi esquecido.

Vamos observar diferentes momentos, desde o final da guerra até à actualidade, e tentar perceber o tipo de representações dominantes sobre esse passado e que diferenças existem nessas representações nos vários países. Um dos conceitos que o projecto pretende trabalhar é o das 'políticas do silêncio'.

O objectivo é ver como é que as sociedade, os estados e os indivíduos recordam, mas também esquecem determinado passado e como é que o esquecimento é organizado. Não se trata de ignorar completamente o fenómeno, mas sim de o lembrar selectivamente.

É isso que se passa no caso português com a questão da guerra e da dissolução do império?

Exacto. Há modos de recordar a guerra, mas, ao mesmo tempo, há leituras dominantes sobre esse passado que vão persistindo. Vamos tentar perceber se ainda acontece algo que foi muito evidente nos anos 80 e 90: o olhar a guerra enquanto evento militar, e talvez diplomático, e não inserido num quadro mais vasto daquilo que foi a violência colonial.

Quando se fala da guerra ignora-se o contexto de violência colonial. Este é um dos motivos por que ainda hoje se sabe muito pouco sobre os massacres cometidos pelas tropas. Outro dos legados relativamente apagado é o das relações entre soldados e mulheres africanas, que, em muitos casos, eram assimétricas e configuravam aquilo que hoje chamaríamos de assédio ou formas de constrangimento sexual.

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