Sociedade

Rui Correia: “Os exames são o desembarque na Normandia e deixam montes de cadáveres na praia”

20 jun 2019 00:00

Foi considerado o melhor professor do País ao conquistar o Global Teacher Prize Portugal 2019. Docente de História na Escola Básica de Santo Onofre, do Agrupamento Raul Proença, em Caldas da Rainha, Rui Correia defende que o tempo é demasiado valioso par

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Insiste em dizer que não é o melhor professor do ano, mas que características deve possuir um docente para fazer a diferença?
Agrada-me a ideia de haver um professor do ano e que represente aquilo que é o apreço que os seus alunos têm pelo que faz. Contudo, ser o melhor professor do ano é uma ideia bastante excessiva, sobretudo, muito excêntrica e extravagante. Não é falsa modéstia, é mesmo um exercício de alguma humildade e que envolve a ideia de que há realmente muitas pessoas com quem me identifico na forma como lidam com o acto de aprender. O que um professor tem de ter para ser um dos melhores na sua profissão? Tem fazer passar a ideia de que aprender não é uma coisa de escola. É muito importante que se perceba que a nossa profissão não é ensinar, mas garantir que os miúdos compreendam coisas e que, de uma forma permanente, se apropriem do conhecimento. Verdadeiramente não nos pagam para dar aulas, mas para que os alunos as recebam. Nisto está uma diferença muito grande em relação àquilo que é a prática dentro de uma sala de aula. Não concebo a ideia de estar a dar uma aula para 90% de uma turma, considerar que 10% não está atenta e que isso são danos colaterais mais ou menos aceitáveis. Tenho horror absoluto à perda de tempo: à minha e à dos meus alunos. É fundamental que encontremos uma carteira de técnicas que nos permitam garantir a atenção dos alunos a 100%. Não faz sentido pedir a um aluno que esteja 100% atento durante todo o tempo de aula. Desligar é uma coisa perfeitamente natural de todo o processo de aprendizagem. Temos de admitir que os alunos podem desligar durante as aulas e que isso não representa uma afronta. Aquilo que faz com que alguém se distraia é ser interessante e curioso com outras coisas que vão acontecendo. Nesse sentido, um professor deve reunir estratégias que lhe permitam ter a certeza que os miúdos estão a receber bem a matéria.

Temos de olhar para os alunos como pessoas adultas, que se distraem e ninguém as condena, admitindo que existem picos de atenção?
Numa conferência há sempre pessoas que estão distraídas, independentemente de o orador estar a ser interessante ou não. Utópico é dizer que os miúdos são pessoas e devem ser tratados como pessoas. Quando entro para uma aula vou com o mesmo grau de ansiedade e de inquietação de alguém que vai para uma conferência qualquer. Tenho de merecer a atenção que os alunos me vão emprestar. Podemos ser bons oradores e ter a planificação bem feita, mas pode acontecer ninguém ter aprendido nada. Não é para isso que me pagam, mas para saber quem é que está a pensar, se for eu o único, então não estou a dar aulas a ninguém. Entre muitas técnicas que uso, uma delas é não dar mais do que 15 minutos seguidos de matéria, porque ninguém me ouve mais do que esse tempo. É verdade que tenho alunos que são capazes de me ouvir a semana toda, mas não estou a dar aulas para seis ou sete miúdos. O meu sistema é de alguém que fala bem, estuda umas coisas, lê uns milhares de livros, mas isso é o quê? Isso diz aquilo que eu sou. Eu vou para a sala de aula para garantir que faço uma coisa que considero sublime: uma pessoa mais velha sabe coisas e quer que os mais pequenos também as saibam. É isso que me faz ser professor. Costumo dizer que a três minutos de morrer quero olhar para trás e perguntar se isto teve alguma serventia. Qualquer pessoa, seja carpinteiro, cabeleireira ou agricultor, deve olhar para trás e dizer que valeu a pena, que as coisas estão melhores do que estavam antes de eu chegar.

O segredo de um bom professor está em como se passa a informação aos alunos?
O segredo está em tratar os alunos como pessoas que vão interessar-se se formos interessantes e, às vezes, nem eu me interesso por pessoas que são interessantes… Quantas vezes acontece estar numa conferência, com um orador fantástico, e de repente há algo que desvia a minha atenção, como lembrar-me que não me posso esquecer de um compromisso. Desliguei por momentos. Isso é falta de respeito? Se calhar é um bocadinho, mas não podia falhar esse compromisso! Isso acontece porque me estou a organizar. Punir um aluno por se distrair com coisas que, se calhar, são da sua organização é absurdo.

Quando um aluno assume que não percebeu algo, há professores que respondem: “não percebeste porque não estavas atento”.
Isso é tão idiota! É claro que uma pessoa não percebe porque não está atenta. Mas, ela até estava atenta, embora a outra coisa. O que temos de fazer é organizar o tempo melhor. No meu caso, damos um bloco de 15 a 20 minutos de matéria. E paramos. A seguir, os alunos fazem uma síntese do que acharam mais interessante. Todos estão envolvidos, praticam a escrita e ficam com o sumário. No fim, todos lêem tudo. A verdade é que aquilo que um aluno se lembra não é o mesmo do que o outro se recorda e vamos completando o puzzle e repetindo. Sem se aperceberem estão a consolidar a matéria. Depois arrancamos com mais um bloco de 15 minutos. Tinha alunos que nunca falavam e obrigar um aluno tímido a falar em público é uma violência. O que habitualmente se faz a esses alunos é uma pergunta dirigida e como o aluno não vai falar ou vai responder mal dão-lhe uma má nota. Estas são as soluções para respeitar o carácter reservado de um aluno? Não acho que isso faça sentido. Tive de encontrar estratégias para esses alunos. Com este sistema, aquele que não queria dar nas vistas vai querer falar, porque todos estão a fazê-lo. Também recorro ao flipgrid.com, uma plataforma onde o aluno se filma a fazer perguntas ao professor. Se quiser mostro aos colegas, senão fica entre nós. Tenho centenas de vídeos feitos pelos miúdos, que de outro modo não participariam na aula. Temos de ter soluções profissionais para estas situações. Adoptou o método de distribuir copos com cores para ter o feedback dos alunos em tempo real do que está a ser explicado. 

É melhor do que perguntar: estão a perceber?
Claro. Tenho 30 anos de carreira e devo ter tido uns 14 ou 15 alunos que disseram não, quando eu perguntei se perceberam. Quando algum responde “não percebi” até me questiono se é verdade ou irreverência. Vou dar uma conferência cujo título vai ser precisamente Perceberam, porque é a pergunta mais inútil que conheço na história do ensino. Quero que os alunos estejam sempre com a expectativa de que não sabem o que está ao virar da esquina. Aprender é sempre um desconforto. É como quando vamos a um museu ou ver uma exposição e sentimos que nos tiram o tapete. É isso que quero que aconteça. Quero que eles tenham sempre a noção de que vai acontecer qualquer coisa, que vai valer a pena. Para que isso aconteça é preciso uma dose brutal de amabilidade. A aprendizagem tem de ser um acto de entrega e de dádiva. O aluno tem de confiar no professor e, para isso, tem de ter a confiança de que pode errar sem problema. As paredes desta escola foram construídas para as pessoas virem para aqui errar. Não é apanhar alguém a errar. Isso é treinar o não aprender e faz com que a pessoa não arrisque de novo para não voltar a cair no ridículo. Por isso uso os white boards. Estes quadros brancos são a melhor forma de fazer revisões. Faço uma pergunta, eles escrevem e mostram: 13 estão errados. Adoro isso, porque é uma excelente oportunidade para duas coisas: não sabia que eles não sabiam e posso corrigi-los, e tenho oportunidade de pedir a quem acertou que explique aos outros.

As suas aulas são humoradas, com exigência e disponibilidade para explicar as vezes que forem necessárias. É uma forma de não focalizar no erro?
Não. É preciso focalizar no erro. O erro é a salvação de toda a aprendizagem. É indispensável. Há um risco quando uma pessoa erra que é não ouvir a correcção do erro. Ou seja, está tão ocupada com a ideia de ter errado, tensa e desapontada consigo própria, que, se calhar, deixa de ouvir a explicação do erro. Quando alguém erra e temos a oportunidade de fazer com que volte a aprender, a sua disponibilidade para ouvir é o momento em que realmente aprende. E só aprendeu porque errou. Se aceitarmos que o erro é natural, torna-se um importantíssimo adubo para o conhecimento.

Mas a escola parece punir o erro e isso reflecte-se em alguns alunos, que não arriscam, com medo do que os outros vão pensar.
Estamos completamente dependentes das notas. Somos viciados em classificações. Não concebemos sequer um sistema onde se possa viver sem notas. Acho isto muito controverso e discutível. Não vejo por que hei-de ter uma razão quantitativa para um determinado desempenho, ainda por cima todos concordam que um 3 e um 3 podem ser notas diferentes. Todos concordamos que os exames avaliam pouco, porque nos esquecemos de uma coisa fundamental: todos os testes servem para aprender e não para avaliar. Avaliam muito menos do que ensinam. Os testes são feitos para consolidar a matéria. As empresas hoje querem pessoas criativas, que sejam viajadas e conheçam culturas. A escola preparou-as para isso? Não. A escola vai prepará-las para que sejam humanas e pensem no outro? Não tenho a certeza disso. Então acham sinceramente que alguém pergunta qual a licenciatura e a média que teve? Não vão ser essas as perguntas que as empresas vão fazer. Nem acho que a escola deva preparar para o mercado de trabalho. As escolas servem para tornar as pessoas livres e cultas. Por isso, tenho medo de duas palavras: inovação e excelência. Excelência é o quê? Ter 20 num teste? Já dei notas muito altas a pessoas que têm muito que crescer em termos de solidariedade. Não estou aqui para ter alunos com boas notas, não é para isso que me pagam. Se assim fosse só dava boas notas. Pagam-me para garantir que os miúdos se tornam mais cultos e por causa disso mais inteligentes. A auto-estima dos nossos alunos - e muitas vezes a própria escola contribui para isso - é um desastre. A esmagadora maioria dos miúdos não tem boa impressão de si própria. No outro dia perguntei quem tem os pés grandes e vários colocaram a mão no ar. Se lhes perguntar se são inteligentes ou cultos dizem logo que não e, no entanto, para a idade deles, sabem montes de coisas.

No tempo da ditadura evitava-se que o povo estudasse, para que não pudesse ser instruído e contestasse. Em democracia defende-se que todos estudem e até se combate o abandono escolar. Mas o que a escola oferece não é um “pensamento formatado”?
Não concordo nada. Não estou aqui para defender a escola e respeito que haja professores que não tenham a mesma visão do que eu. Mas, nenhuma instituição da administração pública evoluiu tanto como as escolas. Por exemplo, o tribunal e os hospitais ainda mantêm uma solenidade que alguns combatem extremamente. As escolas souberam adaptar-se às coisas. Os professores são pessoas acessíveis. A escola está aberta e fervilhante de actividade. É profundamente injusto entender-se a escola como um sítio que parou no tempo. Recebemos miúdos com trissomia 21, síndrome de down, síndrome de asperger, com autismo... e eles estão integrados e ninguém fala disso. Se formos ao estrangeiro e falarmos do sistema de integração em Portugal dos miúdos portadores de deficiência, ficam espantados por os integrarmos no ensino regular, porque ninguém faz isso noutros países. Estamos claramente à frente e não damos importância a isso. Às vezes, até desprezamos a importância que temos.

Que mudanças considera relevantes para melhorar as aprendizagens e a formação dos alunos enquanto pessoas?
Passa por uma responsabilização dos professores. Confiar nos professores. Imagine um sistema, onde não há exames no final e onde se acredita nas notas que os professores deram ao longo de 12 anos de trabalho. É aí que se vê a falta de confiança que se tem no sistema e nos professores. Se tivéssemos confiança nos professores, compreendíamos que este aluno teve um acompanhamento ao longo do seu percurso escolar e os docentes podem dizer se pode ou não ter acesso ao ensino superior. Ou então, imagine-se que é o ensino superior que determina a entrada. Mas isto pressupunha logo uma responsabilização e uma confiança nos professores e o sistema precisa de trabalhar muito isto. Precisamos de gente nova. Os meus colegas têm todos uma média de idades entre os 40 e os 50 anos. Essa jovialidade é indispensável para que o abismo entre alunos e professores não seja assim tão grande. É muito importante rejuvenescer e confiar no corpo docente. É preciso definir estratégias muito concretas para garantir que existe essa confiança nos agentes da educação.

Até porque são os professores que melhor conhecem os alunos e um exame pode correr mal por variadíssimas razões.
É aquilo a que chamo Normandia. Os exames são o desembarque na Normandia e deixam montes de cadáveres na praia. Morrem ali na praia dezenas de alunos. E está a olhar para um. No exame

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