Viver

“Ser livre é saber fazer escolhas”. O final apoteótico e com beatbox da primeira ópera criada por reclusos e artistas na prisão EPL-J de Leiria

4 jun 2022 16:46

Em O Tempo (Somos Nós) há um colectivo de hip hop de jovens da prisão EPL-J de Leiria a brilhar com a Orquestra Gulbenkian e com cantores líricos habituados a salas como o São Carlos

Ópera na Prisão, Traction, Leiria, SAMP
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Ricardo Graça
Ópera na Prisão, Traction, Leiria, SAMP
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Ricardo Graça
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Ricardo Graça
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Ricardo Graça
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Ópera na Prisão, Traction, Leiria, SAMP
Ópera na Prisão, Traction, Leiria, SAMP

Jonathan está no centro de artes performativas Pavilhão Mozart do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL-J) e lê uma carta em voz alta para a câmara.

Noutro espaço da cadeia, a tanoaria, Rute, sozinha no palco, o filho no ecrã e ouve cada palavra que ele lhe dirige.

À distância.

O público todo acompanha o momento mais íntimo de O Tempo (Somos Nós), uma adaptação moderna da história de Ulisses e Penélope, metáfora sobre a liberdade e a separação experienciada atrás das grades, no confinamento ou no dia a dia de cada um, uma história original que é a primeira ópera da SAMP criada de raiz com reclusos, famílias, cantores líricos profissionais acostumados a salas como o São Carlos (André Henriques, Carla Simões, Inês Constantino e Frederico Projecto), músicos da Orquestra Gulbenkian e funcionários do EPL-J, numa equipa de quase 150 pessoas que inclui maestro (José Eduardo Gomes), compositores (Francisco Fontes, Nuno da Rocha e Pedro Lima Soares), libretista (Paulo Kellerman) e encenador (Carlos Antunes).

A estreia absoluta aberta à comunidade, este sábado, na tanoaria do EPL-J, terminou em apoteose e celebração, com o beatbox de Sorin Dorot e o hip hop de outros jovens do EPL-J a contagiarem toda a plateia. 

Senti que, apesar de tudo, eles são frágeis e merecem uma oportunidade”, realça Rute Trabulo, mãe de Jonathan, antes de elogiar o trabalho da SAMP – Sociedade Artística Musical dos Pousos: “É preciso alguém que despolete neles aquilo que eles têm de bom”, alguém capaz de “olhar para eles sem rótulos, sem preconceitos”.

Depois de um momento “muito forte” em Leiria, Rute regressa a Lisboa “de coração cheio”, por ter reconhecido, no ecrã, “o menino” que trouxe ao mundo. Na carta, ele pede-lhe colo e que lhe diga que vai ficar tudo bem.

O espectáculo inspirado nos vocábulos porta e viagem abre um horizonte de esperança para Sorin, o artista do beatbox, habituado a improvisos no EPL-J.

Quero sair daqui e fazer carreira. Gostava que alguém viesse ter comigo e dissesse “vamos aproveitar isso”, porque eu sozinho não consigo”, comenta.

Agora que se concluem os três anos do projecto Ópera na Prisão – Traction dirigido por Paulo Lameiro e David Ramy, com ensaios ao longo do último ano, Sorin diz sentir-se “valorizado e respeitado”.

E, também, “mais livre”, sempre que está em palco.

“Parece que já não estou preso, parece que estou fora, numa festa”.

Sorin, ao centro, com alguns companheiros do projecto Ópera na Prisão - Traction (Foto de Ricardo Graça)

Nos próximos dias 16 e 17 de Junho, O Tempo (Somos Nós) vai ao Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, como anteriormente já foram as obras de Mozart produzidas no EPL-J pela SAMP em edições anteriores de Ópera na Prisão.

No entanto, pela primeira vez, há escala internacional, através do consórcio europeu Traction que liga Leiria, Barcelona e Dublin com parceiros tão importantes como a Irish National Opera e o Gran Teatre del Liceu entre nove instituições de vários países relacionadas com as artes, a investigação e a tecnologia.

Em Novembro, acontece a derradeira apresentação de O Tempo (Somos Nós), no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria.

Para Leonardo da Cruz, outro dos jovens do EPL-J que integra o elenco, o que começou como pretexto “para sair da cela” acabou por revelar-se “uma oportunidade maravilhosa”.

Fiquei apaixonado por isto”, diz ao JORNAL DE LEIRIA.

Eu nem sabia que tinha este potencial, eles lapidaram-me”, agradece. “Acreditaram em nós”.

Quando chegou a orquestra, então, ficou mais real ainda. Sentimos que estamos dentro da personagem, foi brutal”.

A soprano profissional Carla Simões, que interpreta Penélope, considera “um privilégio” trabalhar com não profissionais e reclusos, o que já faz, com a SAMP, há vários anos.

O que me traz cá são mesmo eles. A primeira vez que cantei os nossos bocadinhos do Don Giovanni [de Mozart] para o público da prisão, foi uma experiência como eu nunca tinha tido. É o melhor público que tive na minha vida, porque não estão só a ouvir e a apreciar, eles estão a viver a história”.

Com uma carreira de 15 anos como cantora lírica, descobriu em Leiria o que já não esperava encontrar. “No meio de todas as agruras, os coraçõezinhos têm lá sempre alguma coisa que ainda está pura e fresca e têm lá a criança toda e há sempre esperança ali dentro”, explica. “E isso mudou-me completamente”.

Carla Simões, num momento do espectáculo apresentado esta manhã em Leiria (Foto de Ricardo Graça)

Segundo Joana Patuleia, directora do EPL-J, está já aprovada uma nova edição de Ópera na Prisão financiada pela Gulbenkian, com a SAMP, ao longo de três anos.

O projecto, com “grande tradição” no EPL-J, vai ao encontro do objectivo de ter um estabelecimento prisional “o mais próximo possível do que se passa no exterior”.

Através da arte, é possível inserir, incluir e prevenir a reincidência. Tem de ser uma intervenção holística, com várias vertentes, mas temos verificado que a arte tem um peso grande ao nível da evolução do comportamento e da transformação”, afirma.

Para François Matarasso, coordenador do consórcio Traction, a arte comunitária visa “garantir que outras pessoas têm oportunidades semelhantes”.

O investigador, que há 40 anos trabalha neste campo, acredita que arte é “criação de significado” e destaca o modo como os protagonistas de O Tempo (Somos Nós) criaram significado “sobre o que mais importa na vida e o que é importante para eles”.

Um dos significados desta ópera, que não foi antecipado, é que é também uma ópera sobre a pandemia, sobre os confinamentos e sobre todo o tempo em que estivemos separados das pessoas que amamos”, o que a torna uma história “mais universal”, salienta.

Sobre a SAMP, a certeza de que se trata de uma instituição ao nível das melhores no mundo.

O que os faz diferentes? Eles sabem realmente porque o que estão a fazer. O coração do que é ser humano. E são capazes de construir relações reais e humanas com as pessoas que conhecem. O que eles oferecem é real e têm muitos anos de experiência. São muito hábeis no que fazem. Não chega ter um coração grande, também é preciso ser hábil e ter experiência”, refere.

Hoje temos aqui pessoas da Irish National Opera e da Ópera de Barcelona [Gran Teatre del Liceu] e eu sei que eles vão embora deslumbrados com o que viram”.

François Matarasso, coordenador do projecto Traction (foto de Ricardo Graça)

O amor é uma porta que nos pode libertar se a soubermos abrir”, ouve-se durante o espectáculo, que coloca em confronto a espera e a fuga. Estar sempre em fuga pode ser uma prisão, mas também o apego. É o Homem que faz o destino ou é o destino que faz o Homem? “Ser livre é saber fazer escolhas”.

Com a essência do rap, Camões lido em crioulo, participações desde Barcelona e Dublin e a Orquestra Gulbenkian por instantes a viajar nos ritmos africanos, O Tempo (Somos Nós) aproveita novas ferramentas digitais desenvolvidas à medida: o Co-Creation Space, para partilha de conteúdos, comunicação e colaboração, e o Co-Creation Stage, para ligar artistas de forma remota através da internet e em directo, nomeadamente, entre o Pavilhão Mozart e a tanoaria, e, nos dias 16 e 17 de Junho, entre o Pavilhão Mozart e o Grande Auditório da Gulbenkian.

Na segunda-feira, 6 de Junho, o consórcio Traction reúne- se numa conferência em Lisboa.

Entre outros objectivos, pretende “medir e avaliar” o impacto das práticas artísticas e da co-criação como estratégia para a inovação social, neste caso, junto da comunidade prisional em Leiria, da população migrante em Barcelona e do encontro entre a cidade e o campo em Dublin.

Leia mais, incluindo depoimentos de Paulo Lameiro, David Ramy e do libretista Paulo Kellerman, no artigo publicado quinta-feira, 2 de Junho, pelo JORNAL DE LEIRIA: "Uma ópera criada na prisão traz a Leiria a Orquestra Gulbenkian"