Sociedade

Socorro, tenho um filho sobredotado

30 jun 2024 09:01

Ao contrário do que muitos possam pensar, ser sobredotado pode não ser assim tão bom, sobretudo, porque o lado social das crianças é, por vezes, inexistente e sofrem quando não são estimulados

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Se o professor não fizer a diferenciação nestes alunos, pode estragar todo o trabalho desta criança
Ricardo Graça

Professores que não reconhecem as altas capacidades dos alunos, isolamento e dificuldade de inserção são alguns dos problemas que as crianças sobredotadas ou com altas capacidades para a sua idade, enfrentam desde pequenas.

A sua sede de conhecimento, as perguntas infinitas, a insatisfação e a dificuldade em actividades em que são menos bons provocam, por vezes, frustração nos alunos que têm capacidades acima da média. As respostas para pais e professores são quase inexistentes.

Leiria é dos poucos municípios que aderiu ao Programa Investir na Capacidade (PIC), que tem como objectivo desenvolver o potencial nas áreas cognitiva, emocional e interpessoal das crianças com capacidades acima da média em áreas diversas, como a interacção social com os pares, sensibilizando a sociedade para as necessidades educativas destas crianças.

Promovido pelo Município de Leiria em parceria com a Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas e com a Escola de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria, a autarquia iniciou este ano a oitava edição do PIC.

Destinado a 25 crianças das escolas do 1.º ciclo do concelho, o programa oferece actividades lúdico-pedagógicas diversificadas que visam contribuir para uma melhor adaptação ao meio escolar e apoiar pais e professores.

Olga Silva, mediadora da equipa do Projecto Intermunicipal de Promoção do Sucesso Escolar (PIPSE) e coordenadora do PIC, salienta que este projecto, que existe desde 2016, chega a Leiria por proposta de encarregados de educação, que tinham de se deslocar ao Porto para que os seus filhos pudessem usufruir das actividades que lá se realizavam.

 

São crianças que perguntam, questionam, nunca estão satisfeitas com nada. É difícil acompanhá-las, mesmo para nós, adultos
Olga Silva

Helena Serra, responsável por este programa, desafiou a autarquia a aderir ao PIC e a vereadora da Educação, Anabela Graça, não hesitou em responder afirmativamente. “O PIC não é necessariamente para crianças sobredotadas. É para crianças que tenham capacidades acima da média para a idade. Promove  actividades que vão ao encontro não só das suas áreas mais fortes, mas também que fujam um bocadinho às suas áreas de interesse”, adianta Olga Silva.

A responsável explica que estas crianças têm uma vontade de conhecimento insaciável. “São crianças que perguntam, questionam, nunca estão satisfeitas com nada. É difícil acompanhá-las, mesmo para nós, adultos”, admite. Esse é um dos problemas que enfrentam. O facto de a escola nem sempre corresponder às suas  necessidades, pode verificar-se um “desinteresse crescente pela escola e por aquilo que ela oferece”.

Daí advêm sentimentos de insegurança e medos, manifestações de frustração e desânimo”, alerta Helena Serra. O nível de desmotivação por várias disciplinas pode resultar, inclusive, em baixo rendimento escolar.

Enfrentam, por vezes, uma atitude de crítica em relação aos outros e de rejeição ao que lhe é ensinado, porque são matérias que já dominam. Podem apresentar uma obstinação, um certo desligamento do secundário, impaciência, não conformismo com as pressões dos pais, colegas e professores e uma frustração com a inactividade e ausência de progresso.

Os problemas com que se deparam surgem pelo desinteresse pela rotina, rejeição por parte dos colegas, que os não entendem, dificuldade em aceitar o ilógico, o superficial ou conhecimentos mal estruturados ou pouco definidos, necessidade precoce do domínio das habilidades fundamentais e falta de estímulo familiar e escolar apropriado. Como dar resposta? Manter a motivação e interesse e apostar na diferenciação e individualização, com conteúdos curriculares, métodos e estratégias adaptados.

Em Portugal existe o DUA- Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), uma abordagem curricular que assenta precisamente num planeamento intencional, pro-activo e flexível das práticas pedagógicas, considerando a diversidade de alunos em sala de aula.

As práticas pedagógicas sustentadas no DUA oferecem oportunidades e alternativas acessíveis para todos os alunos em termos de métodos, materiais, ferramentas, suporte e formas de avaliação, sem alterar o nível de desafio e mantendo elevadas expectativas de aprendizagem.

Esta abordagem flexível e personalizada por parte dos docentes, na forma como envolvem e motivam os alunos na aprendizagem, no modo como apresentam a informação e na forma como os avaliam, permite que as competências e os conhecimentos adquiridos possam ser manifestados de maneira diversa. Para dar resposta a estes alunos é também possível acelerar não só a entrada na escola um ano mais cedo ou avançar um ano em frente. No entanto, a decisão terá de ser tomada tendo em conta a maturidade da criança.

Numa formação com pais, a coordenadora nacional do PIC alertou-os para a importância de garantirem que os filhos têm um amigo. “É muito importante que possam ter um amigo. De certeza que haverá alguém com um interesse comum e agarrem-se a isso”, aconselhou, ao afirmar que as dificuldades interpessoais são um dos principais problemas destas crianças.

Um dos pais presentes concordou: “O meu filho é sempre o último a ser escolhido num jogo de futebol e nem para a baliza o querem”, constatou. Isto, porque apesar de ser excelente ao nível cognitivo, tem baixa capacidade ao nível da destreza, factor comum a muitos sobredotados.

Outro encarregado de educação acrescentou que nem para as festas de aniversário o filho costuma ser convidado. Uma mãe partilhou ainda a situação do seu filho, diagnosticado com autismo, mas com altas capacidades intelectuais, cuja professora “não lhe reconhece capacidades”. “Ele vai sempre triste para a escola.”

Helena Serra afirma que os professores também precisam de orientação, pelo que o diálogo entre pais e docentes é fundamental para ajudar as crianças a ultrapassarem as suas dificuldades e serem felizes na escola. “Se os outros ainda estão a acabar os trabalhos, então vamos dar-lhe um livro para ler ou explorar as suas capacidades”, salienta a especialista em educação especial, ao destacar a importância de saciar a vontade de conhecimento que estes alunos têm.

Uma outra mãe revelou que a experiência no 1.º ciclo foi “desastrosa”, pelo que a ida da filha para o 2.º ciclo a angustia. “Na pré era muito feliz, mas no 1.º ciclo a professora dizia sempre: eu é que sei, eu é que sou a professora e sei avaliar se tem capacidades acima da média ou não”, apontou.

Este é um tipo de comportamento que as crianças enfrentam, por vezes, ao longo do seu percurso escolar, pelo que é preciso prepará-los para o que podem encontrar. “Antecipar as situações para também tranquilizá-los”, aconselha Helena Serra, que lembrou que os professores estão preparados para os alunos médios em geral.

Saber ler aos 3 anos

Saber ler e escrever ou contar números para além das muitas dezenas aos 3 anos significa que se poderá estar perante uma criança com capacidades acima da média. Apesar de poder ser “engraçado” e até motivo de orgulho no início, a coordenadora nacional do PIC adverte os pais para não “exibirem” o filho.

Por outro lado, também o devem incentivar a melhorar os aspectos em que é menos bom. “Todos têm dessincronias. Podem ser altamente sobredotados numa área e desabilitados noutra. Com treino podem melhorar e há que valorizar as crianças, mas exibi-las é perigosíssimo”, reforça, justificando que o aluno pode vir a assumir que não pode falhar ou que é melhor do que os outros.

“É dizer-lhe, num ambiente restrito, gostei do que disseste, e encorajá-lo nos pontos menos fortes, para que os possa ultrapassar”, insiste. Alimentar a curiosidade destas crianças é fundamental, pois a “pobreza de estímulos” pode deixá-los tristes.

Olga Silva acrescenta que estes são chamados, por vezes, os “meninos desagradáveis, porque nunca estão satisfeitos com nada e questionam muito o professor”. “Acabam por ser aqueles meninos que abanam um bocadinho o professor e, por vezes, é complicado ter uma criança destas na sala, sobretudo, porque hoje as turmas são grandes e pouco homogéneas”, explica a responsável pelo PIC em Leiria.

Como são alunos que acabam os trabalhos sempre primeiro, o que ouvem toda a vida é: “agora esperas um bocadinho”. “Eles passam a vida à espera. Se o professor não fizer a diferenciação nestes alunos, pode estragar, digamos assim, todo o trabalho desta criança, porque desmotiva”, constata Olga Silva.

O que o PIC procura fazer é precisamente explorar as capacidades destes meninos, mas também fazê-los sair da zona de conforto, desafiando-as a experimentar actividades que não gostam ou são pouco capazes.

“As actividades são desenhadas para o grupo, mas têm em conta as áreas de interesse de cada um deles. Acaba por ser um trabalho personalizado, pois também os desafia para outro tipo de ofertas.” Um dos exemplos é a prática do surf, que o grupo anterior realizou. “Nenhum gostava nem queria entrar no mar e foi uma actividade excelente. Cada um com o seu medo, mas todos acabaram por experiênciar e no final o problema foi tirá-los de lá, porque já ninguém queria sair”, conta.

Impacto do PIC

Dormir fora de casa é outro desafio difícil para estas crianças. No PIC esse é outro obstáculo que tentam que os participantes ultrapassem. No final do programa, as crianças são convidadas a ‘acamparem’ de sábado para domingo. “Não queremos obrigá-los, mas acredito que vamos conseguir.”

Para Olga Silva, a mais valia deste programa é a promoção de actividades para as crianças, mas também para os pais, através das formações de capacitação.

A articulação com os professores é também estabelecida e a equipa pretende agora “perceber qual é o impacto que este programa tem nestas crianças em sala de aula”.

“Percebemos que o impacto é muito. Os professores referem que eles estão muito melhores ao nível social. Este era um grupo que inicialmente era muito complicado ao nível da socialização. Cada um estava no seu canto. Hoje em dia já todos se entreajudam e partilham”, revela.

Ao longo das sessões, as crianças foram- se apercebendo que as dificuldades são comuns a todos. Também os pais encontram compreensão entre eles e percebem que o filho não é o único com determinado problema. “Há partilhas muito próprias, que nem sempre os pais conseguem explicá-las da melhor forma a quem não as entende. Aqui, isso acaba por se diluir muito, porque todos têm a sua especificidade e acabam por compreender-se”, reforça Olga Silva.

Segundo a coordenadora, há que ter em conta que cada criança é única, “porque tem especificidades completamente diferentes” e por isso, “acaba por ser muito difícil para os professores”, mas já se nota uma grande abertura e o que têm referido é que notam os alunos mais à vontade não só dentro da sala de aula, mas no recreio e no convívio com outras crianças”.