Sociedade
"Vinham troncos a arder no ar"
Pobrais chora 11 mortos e combateu as chamas pelos próprios meios
As palavras que Georgina Carvalho vai dizer a seguir referem-se ao momento em que os habitantes de Pobrais se viram isolados do resto do mundo, à mercê do fogo, e tudo o que não devia acontecer começou a acontecer: os telemóveis calaram-se, a luz apagou-se e a água deixou de jorrar das mangueiras.
Havia vento, fumo, um calor de fogueira e o ruído assustador das chamas a mastigarem a aldeia cada vez mais perto das habitações. "Vinham troncos a arder no ar e caíam onde calhava", descreve a mulher de 77 anos.
Viúva, sozinha à hora do incêndio, entregou- se a uma coragem inexplicável quando as labaredas começaram a lamber as casas da Rua da Ribeira, pelas 17 horas de sábado, dia 17. "A primeira casa a arder foi aquela, morreu o rapaz que lá vivia. E depois encostou-se aqui", explica.
Está convencida que "a mão divina" a protegeu do pior destino. "Nunca me enervei, nunca tive medo, entreguei-me a Deus". Enquanto Pobrais, no concelho de Pedrógão Grande, se transformava num cenário de guerra, os filhos de Georgina Carvalho começaram a aperceber-se da tragédia a centenas de quilómetros de distância, através das notícias que chegavam aos media nacionais.
Mas nunca conseguiram falar com a mãe por telemóvel. O fogo destruiu antenas e linhas de comunicações, deixando famílias inteiras sem contacto. "É terrível o que a pessoa sente. E depois perceber que não havia forma de lá chegar", descreve Silvério Almeida, que estava em Lisboa, onde reside.
Só acalmou quando viu a mãe numa reportagem de televisão, sã e salva. O primeiro familiar a bater à porta de Georgina Carvalho acabou por ser um neto, já noite dentro. Em Pobrais morreram 11 pessoas, um terço da população.
Dez fugiram de carro, só para perderem a vida algumas centenas de metros à frente, na chamada estrada da morte, a N236-1, cercados pelo lume que chovia de todos os lados. Jaime e a mulher Fátima, o filho Ricardo e a nora Ana; também duas primas, que eram madrinha e afilhada, ambas Anabela; e Manuel Fidalgo e a mulher Aurora, o filho Fernando e a nora Arminda, todos acima da meia idade, que moramoravam fora, mas se encontravam de fim-de-semana na aldeia.
Na porta ao lado, os vizinhos escaparam ao horror por motivos que são uma espécie de espelho sem moral: têm residência fixa na povoação, mas ausentaram-se durante o fim-de-semana.
Avança-se pela Rua da Ribeira, 48 horas depois. Continua a faltar a electricidade, sobram as evidências do mal: há carros queimados até ao esqueleto, habitações reduzidas a ruínas, existências interrompidas pelo vazio.
"Foi uma questão de segundos", conta Ondulina Fernandes, 64 anos, que tinha a neta consigo. "Houve pessoas que pegaram nos carros porque isto era só lume, lume, lume, e chegaram lá acima e ficaram". Ondulina chegou a pensar fazer o mesmo, mas deteve-se. "Foi um milagre".
EN 236-1
Estrada para o inferno
Num curto troço da estrada nacional 236-1, que liga Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande, morreram dezenas de pessoas – 47, segundo dados oficiais, ou seja, a maioria das mortes já confirmadas e atribuídas ao incêndio que deflagrou sábado em Escalos Fundeiros.
Nalguns casos, famílias inteiras presas pelo fogo quando procuravam um caminho de fuga. Os corpos foram encontrados tanto na estrada como no interior dos veículos carbonizados. Entre os que faleceram, há turistas que vinham de Castanheira de Pera, da Praia das Rocas. Outros escolheram a N236-1 porque o IC8 estava cortado ao trânsito, precisamente devido ao avanço das chamas.
O primeiro-ministro, António Costa, quis saber os motivos para a N236-1 se encontrar aberta, na resposta a GNR disse que "o fogo atingiu a estrada de forma absolutamente inusitada e repentina". Mas muitos dos que faleceram vinham em fuga das aldeias em redor, acabando por encontrar a morte depois de percorrerem apenas algumas centenas de metros até chegarem à N236-1, que se revelou uma armadilha. Mário Pinhal, um dos poucos sobreviventes da estrada da morte, disse à SIC que tomou a "decisão errada" quando abandonou a casa de férias na povoação de Várzeas.
A mulher e as duas filhas adolescentes morreram na N236-1, no interior do automóvel onde viajavam. Ele seguia noutra viatura e sobreviveu, com os pais e uma tia. "Andei para a frente e para trás ao longo de uns 500 metros.
Vi carros desfeitos, fiz marcha-atrás, mas abalroaram-me. Vi uma pessoa a abandonar o carro com o cabelo a arder, a roupa a arder. O carro que nos tinha abalroado ficou em chamas.
No carro onde estava, os retrovisores começaram a derreter. Quando conseguimos sair, já estavam os carros todos a arder. Os pneus explodiam. Acho que fomos os únicos sobreviventes”, disse ao Público.
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