Opinião
A calma aparente dos dias
Sou do tempo de crianças sem sapatos, mesmo no Inverno, e dos pés gelados na escola, aquecidos às vezes com seixos quentes embrulhados em papel de jornal
Por algum tempo sorvi o silêncio, inspirei a calma dos dias, gozei secretamente de uma certa desansiedade, tive tempo para deixar passar o tempo…
Agora caminho sozinho, na estrada do vale da Caldelas e Caranguejeira, por onde há quase um ano tenho caminhado todos os dias com o meu amigo Isildo.
Nem viv´alma, a não ser na encosta arborizada, melros, charéus, pintassilgos. Até já vi um casal de texugos brincarem descuidados, no meio da estrada, em luta amorosa, e uma coruja saudou-me várias vezes ao raiar do dia. E tenho visto milhafres a pairar serenamente, imperiais, e corvos, muitos corvos…
Parece que a Natureza, por momentos, recuperou a sua presença, ao meu lado. Só para mim. E lembrei-me da calma de outros tempos.
Num tempo em que não havia estrada alcatroada, nem electricidade.
Um telefone apenas, na loja do sr. Agostinho, dois ou três carros por dia, a camioneta de carreira de manhã e ao fim do dia, e os carros de bois, espicaçados nas ladeiras com as varas afiadas.
Sou do tempo de crianças sem sapatos, mesmo no Inverno, e dos pés gelados na escola, aquecidos às vezes com seixos quentes embrulhados em papel de jornal, do tempo da lousa de xisto e as contas da aritmética apagadas com cuspo, e das “provas” escritas a tinta de caneta aparo.
Sou do tempo do caderno de duas linhas e de brinquedos simples como o pião (que custava 12 tostões), dos eixos, dos rodeiros, dos “foguetes” feitos com as pontas das canas para as vinhas.
Sou do tempo dos rebuçados de meio tostão.
Acendi candeeeiros a petróleo e a carbureto e acendi o Petromax, que era um luxo e iluminava este mundo e o outro…
Lembro-me das refeições cozinhadas ao fogo da lareira, do pão e da broa a sair do forno com um cheiro maravilhoso e do porco a ser morto (embora sem coragem de o ver!) e a “fritada” com as primeiras carnes acabadas de cortar.
E logo a seguir soprávamos na bexiga do porco, ainda mal lavada, e jogávamos futebol com ela o pouco tempo que durava sem rebentar.
Sou do tempo em que o carteiro tinha tempo para conversar connosco e ainda me lembro de um almocreve passar com uma carroça puxada por uma mula cheia de tudo e mais alguma coisa e vender um litro de azeite tirado de um odre.
Lembro-me de os miúdos beijarem a mão do sr. Padre quando por acaso passava e das rezas que curavam o mau olhado, a papeira e ventre inchado…
Sou do tempo do sr. António Moço, do sr. José “Branco” e do meu avô, que conseguiram regressar vivos da grande guerra em França. E lembro-me do velho sr. “Apxé” (que se chamava assim por ter um defeito na fala e dizer muitas vezes “Ah, pois é!”) nos dizer que o seu avô se lembrava dos soldados franceses na aldeia…
Sou do tempo dos homens gastos dos ossos de tanto cavar, e de algumas mulheres sumidas de tanto filho e de tanta falta de descanso.
Sou do tempo em que ter 70 anos era ser velho e ainda vi carpideiras, de preto, sentadas na soleira da casa do morto, pranteando ao desafio…
Sou do tempo dos sinais, tocados pelo sacristão, em cada badalada pressentindo o sumiço de alguma alma…