Opinião
Bem-vindos ao Planeta Fome
Oriunda de uma família humilde, nascida numa favela, Elza foi mãe aos 12 anos
Remeto-vos para o dia em que Elza Soares, (nome incontornável da música brasileira falecida em Janeiro de 2022, com 91 anos de idade), cantou em público pela primeira vez, aos 13 anos. Na época, estava desesperada por ter um filho doente e precisava de dinheiro para comprar medicamentos.
Oriunda de uma família humilde, nascida numa favela, Elza foi mãe aos 12 anos. Obrigada pelo pai a abandonar os estudos e a casar-se por conveniência e coação, nessa relação, foi repetidamente vítima de violência doméstica e sexual, infligida pelo seu marido.
"Planeta Fome" é parte de uma frase empregue em 1953 por Elza no episódio que marca o começo das suas actividades musicais, ao estrear-se no programa Calouros Em Desfile, apresentado por Ary Barroso, na Super Rádio Tupi.
Antes da participação no programa, passava dificuldades e estava abalada pela morte recente do seu primeiro marido (tinha 21 anos). Até então, trabalhava na fábrica de sabão Veritas, como embaladora e num hospital psiquiátrico, onde além do salário, obtinha comida, que furtava pouco antes do local ser encerrado e os funcionários regressarem a casa.
Para a apresentação no concurso que lançou Elza na ribalta, envergou um vestido cedido pela mãe, com aproximadamente vinte quilos a mais do que Elza, ajustado-o com vários alfinetes. Ao subir ao palco, foi recebida pelo auditório e Ary Barroso com gargalhadas. O próprio apresentador tentou ridicularizá-la, perguntando: «De que planeta você veio?», ao que Elza rebateu: «Do mesmo planeta que o senhor: Do planeta fome».
Paradoxalmente, esta frase veio a ser o título do seu 34º álbum de estúdio, manifesto de liberdade e evocação da sobrevivência às adversidades e injustiças do mundo em que vivemos. A «Fome» de que fala Elza é de cultura, dignidade, educação, igualdade, de acesso condigno à alimentação, à saúde e à habitação, sem subterfúgios políticos a causar amarras. «Eu não vou sucumbir» enfatiza no tema «Libertação», que abre este álbum subversivo.
Evoca a indiferença, mas também, o combate pela sobrevivência, em que o ‘olho por olho, dente por dente’ ainda imperam: «Venha cá, menino/ Não faça isso não/ Sei que é muito triste/ Não ter casa, não ter pão/ Não te leva nada/ Destruir o seu irmão/ Você representa/ O futuro da nação». «Blá Blá Blá» é um hino que exorta à revolta contra a hipocrisia, esteio das sociedades democráticas: «O negócio é o seguinte: Negociata total!/ O patriota agora nem vende ou aluga o país/ O novo patriota cede gentilmente as terras (…)».
O mesmo sucede em «Comportamento Geral» um eufemismo de irónicas palavras e acutilante verve: «Você deve estampar sempre um ar de alegria/ E dizer: Tudo tem melhorado/ Você deve rezar pelo bem do patrão/ E esquecer que está desempregado». São constantes os pregões de insurgimento à construção da fátua ‘paz social’: «Desconsidere a razão», «Desparafuse a construção/ Descontinue a tradição».
Apesar dos infortúnios da vida, reserva um lugar para o Amor como sentimento salvífico. Em «Lírio Azul» enuncia em voz torpe: «Que fez de mim um Sol/ Fez o que eu sou (…)/ Quando um lírio toca o meu olhar/ Meu colírio é você/ Meu olhar brilha em você/ Minha vida em você».
E que o ‘Planeta’ não seja somente o «do sonho»: «Eu preciso encontrar um país/ Onde a saúde não esteja doente/ E eficiente, uma educação/ Que possa formar cidadãos realmente/ (…) Onde a corrupção não seja um hobby/ Onde ser solidário seja um ato gentil». É preciso «Virar o Jogo», porque como diria Mandela, «Deixem reinar a liberdade. O Sol nunca se põe em tal façanha humana».