Opinião
Cedência
Quando o Teatro se acomoda ao Poder – seja ele qual for – perde a sua essência criativa, subjuga-se, prostitui-se, passa a ser subserviente
A 23 de fevereiro de 1981 o Congresso dos Deputados, democraticamente eleito pelo povo espanhol, viu os seus trabalhos parlamentares subitamente interrompidos quando um grupo de guardas civis, às ordens do tenente-coronel Antonio Tejero, irrompeu a casa da democracia com a pose própria dos fascistas e prepotentes gritando “Quieto todo el mundo”.
Para que não restassem dúvidas das suas intenções disparou e foram disparadas as carabinas dos soldados às suas ordens. Santiago Carrillo não cedeu e manteve-se sentado no seu lugar de deputado, num gesto que mais do que coragem demonstrou a firmeza de carácter de quem sabia que há momentos na vida em que uma cedência dá lugar a outras e com essa sucessão de cedências se perde a liberdade.
Na passada quinta-feira no Teatro São Luiz, em Lisboa, a récita da peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, de Samuel Adamson, e que Pedro Almodóvar magistralmente transpôs para cinema, desta feita encenada por Daniel Gorjão, foi subitamente interrompida quando Keyla Brasil, autodenominada “atriz, prostituta”, invadiu o palco.
Acusava a senhora que não era legítimo ser aquela peça interpretada por atores e atrizes que não fossem pessoas transgénero. O gesto teve eco e repercussão. As questões fraturantes da nossa sociedade devem ser expostas, esclarecidas com verdade e assentes na evidência, debatidas com liberdade de expressão e isso implica respeitar sempre o pensar do outro mesmo quando não é igual ao nosso. Escutar para sermos escutados, mesmo que isso implique, por vezes, manifestações que rompam o estabelecido. Contudo, lamenta-se a repercussão.
Ao que se sabe, por ora, a produção do espetáculo cedeu de imediato e um dos atores foi substituído no papel que desempenhava enquanto artista de pleno direito.
Quando em 2007 Samuel Adamson escreveu esta peça estava já a reivindicar um território de reflexão para as pessoas transgénero, dando continuidade a um movimento de reflexão iniciado em 1994 com “Priscila, a Rainha do Deserto”, um dos mais dignificantes filmes realizados sobre o tema e que terá contribuído para uma honesta discussão sobre os inequívocos direitos dos transexuais.
Desta feita o Teatro português perdeu. Perdeu muito! Cedeu na liberdade de criar, de garantir que o palco é um espaço sagrado onde tudo pode ser dito, sem limites, censuras, imposições.
Quando o Teatro se acomoda ao Poder – seja ele qual for – perde a sua essência criativa, subjuga-se, prostitui-se, passa a ser subserviente e fica ao serviço da não-verdade.
Lamenta-se esta cedência pois há que nos mantermos convictos nos valores e na Arte que assumimos e com a qual nos comprometemos. O fascismo pode ter muitas formas e em nome da liberdade não podemos hipotecar a liberdade.