Opinião

Cinema | Um paraíso de referências, um inferno de incertezas

6 nov 2021 12:30

Mia Hansen-Løve queria explorar quanto da biografia do criador pode estar na obra que cria, esbatendo a linha entre realidade e ficção

A Ilha de Bergman (2021), realizado por Mia Hansen-Løve, leva-nos até à pequena ilha de Fårö, no Mar Báltico, que se tornou sinónimo de Ingmar Bergman. A relação de Bergman com Fårö deveu-se à procura de uma localização para uma longa-metragem. O sítio foi-lhe sugerido pelos produtores, após estes terem rejeitado a ideia do realizador sueco em filmar Em Busca da Verdade (1961) nas Ilhas Orkney, já que seria muito dispendioso. Bergman inicialmente estava céptico. Porém, os produtores aconselharam-no a dar pelo menos uma vista de olhos à ilha. Assim o fez e aquele lugar não só daria uma nova paisagem aos seus filmes como se tornaria a sua casa.

De passagem por essa ilha está o casal de realizadores Tony (Thim Rod), mais experiente e com uma filmografia, e Chris (Vicky Krieps), menos confiante no seu processo criativo, que decide viajar para Fårö em busca de inspiração para terminar os guiões.

Obviamente, estão os ingredientes todos postos em cima do balcão para nos dar um filme pejado de referências – um tanto anódinas – em conversas ocasionais, viagens (Bergman Safari), sessões cinematográficas, etc..

Hospedados na casa onde foi rodada Cenas da vida conjugal (1973), Tony e Chris decidem dormir em camas separadas, alimentando assim o imaginário e os mitos em torno da figura de Bergman, porque a cama de casal onde era suposto dormirem “fez milhões de casais divorciarem-se”. Da janela do moinho, Chris esforça-se para conseguir escrever, embora o mesmo não se passe com Tony. A fim de tentar resolver o bloqueio, ela expõe ao marido a história desenvolvida até ao momento, “que talvez não seja suficiente para um filme”. Dessa narração que cria um outro filme, nasce um segundo par: Amy (Mia Wasikowska, cuja representação ofusca qualquer uma das outras) e Joseph (Anders Danielsen Lie).

Durante muito tempo, o filme não parece sair do registo cartão turístico e, quando finalmente nos agarra, com a surpresa do filme dentro do filme (que funcionando é golpe de génio, mas falhando realça a inconsistência de tudo o que se viu para trás, porque nada ficou resolvido, simplesmente se passou à frente), já é tarde demais e nos leva a perguntar: Porque afinal não foi isto o filme? Não foi isto o filme porque Mia Hansen-Løve não queria fazer mais uma simples história de um amor que surge no momento errado, proporcionada pelos reencontros que só o cinema sabe como oferecer. Queria, antes, explorar quanto da biografia do criador pode estar na obra que cria, esbatendo a linha entre realidade e ficção, e o quanto aquela pode ser condicionada pela vida que escolhe. Esta é uma das preocupações de Chris, mas na qual sentimos em pleno a voz da realizadora: “Acha que se pode criar uma vasta obra excelente e sustentar uma família ao mesmo tempo?”. Todavia, ficamos com dois filmes desenvolvidos superficialmente num só e as personagens sofrem muito com isso. E quanto mais o filme caminha para a sua cena final, mais parece alvo de decisões apressadas, cujas fragilidades seriam supostamente ultrapassadas pelo dispositivo da metanarrativa ao deixar para o espectador a interpretação de certas “impossibilidades”.