Opinião
Desabafo
Apetece-me gritar: acordemos! Deixemos de fazer de conta que estamos a participar, que estamos a trabalhar, que estamos a viver.
… desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente…
é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito.…
É na comunidade que a nossa história começa.
Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada
configuração histórica, espiritual e ética.
José Tolentino Mendonça, 2020-06-10
Escrevo e volto a escrever esta crónica, de testemunho a desabafo, de lamúria a confissão, a desilusão acompanha-me. E reescrevo.
Passou o solstício de Verão e como de carrossel as palavras “…os rituais são … dispositivos de protecção. quando desaparecem, sentimos a intempérie…”.
E caminho pela cidade, ouço os pássaros, assobio-lhes e às vezes respondem. Sigo aquela rua que sei que tem as rosas santa teresinha e os odores das tílias e olho as nêsperas que em outros tempos comia pela cidade e me tingiam as unhas.
Alento e desalento, avalio os pontos ritualizantes agora fracturados pelas intempéries - levantar, ver o dia nascer, arejar casa, lavar, café, pequeno almoço e roupa para o filho, sair, andar pela cidade e se terça feira, mercado, casa - desinfectar.
Voltar ao atelier, voltar a casa dar abraço ao filho e relembrar-lhe a hora da primeira aula, voltar ao atelier, intempérie um, preparar almoço, almoço, arrumar, intempérie dois, dar lanche, intempérie três, hora de rua com filho, voltar a casa, banho, fazer jantar, arrumar, intempérie quatro, deitar, dormir ou não, intempérie cinco.
De intempérie em intempérie a capacidade de reacção diminui e o desalento aumenta.
É preciso reagir, mas estou cansada e zangada e esta comunidade em que me insiro e pertenço, sinto-a cansada e zangada, e parece que de cansaço em cansaço, de zanga em zanga, desistiu e se conforma com um destino que todos plasmamos alheio.
Mas este momento em que vivemos não nos é alheio, não exclui nenhum de nós.
Fragiliza todos e sim, uns mais que outros, e sei que todas as vidas importam e, que o todo é diferente do somatório das partes, mas que é o todo, o colectivo, que é/será capaz de determinar uma configuração histórica, espiritual e ética e, finalmente, que a este todo pertenço e partilho o gesto.
Apetece-me gritar que estamos em modo de sobrevivência, muitos a enganar muitos outros, e fazer de conta que não sabem que este seu fazer de conta está a manipular com toda a desfaçatez o outro.
Aos que têm a sua sobrevivência garantida não importam os que não têm e ainda não perceberam que se a têm é porque os que oportunisticamente manipulam lhes subsidiam essa manipulação.
A continuar assim, é um mundo todo que não avança.
Apetece-me gritar: acordemos!
Deixemos de fazer de conta que estamos a participar, que estamos a trabalhar, que estamos a viver.
Eu quero cheirar o corpo, dar o beijo, dar apertado abraço, e sim nesta fase de tanta adaptação e aceitação estou pronta para a ira, perante o
gesto irreflectido, alavancado pela preguiça e displicência de quem em nada acredita e de quem tem a alienação e a inexistência do colectivo como consortes.
Não quero que o medo me tolde a vida, nem o medo da morte certa.
Quero proximidade, cumplicidade, solidariedade.
Sei que o mal e o bem são uma mesma pertença a esta humanidade à deriva, e penso que a esta humanidade a solidariedade e a compaixão são também uma pertença.