Opinião

Gémeos à beira do lago

10 fev 2022 15:45

“Os gémeos!” era um sinal ecoado de alerta, de perigo para todos

Eram iguais, homozigotos assim chamados, mas isso só saberia muito mais tarde.

Naquele tempo só os conhecíamos pelos gémeos, em tudo idênticos no cabelo encrespado, no rosto de ossos salientes, no olhar frio e calculista, na pose de ataque eminente e ameaçador, nos gestos e atitudes sempre intimidatórios para quem lhes passava perto.

A canalhada do Bairro Novo temia-os mais que as reguadas da professora Gabriela, os puxões de orelhas ou sapatadas dos pais, mais ainda do que ao homem dos bois, tão sempre em esfoço dobrado quanto os bovinos que arrastavam a carroça ladeira acima, de lenha no inverno, apinhada até ao coruto com as malas e caixotes dos banhistas que nos ocupavam as casas e as ruas durante o veraneio.

“Os gémeos!” era um sinal ecoado de alerta, de perigo para todos, um código de medo para a fuga, para que nos acoitássemos no vão de uma porta, de correria para algumas ruas mais além, para que procurássemos refúgio além portas de batente duplo na taberna do Tavares.

Pressentíamos-lhes os olhares vidrados no breu dos pesadelos, nas sombras dos plátanos, nos olhares temerosos quando segredávamos a sua existência ou a última malfeitoria.

Nisso, ao menos, eramos fortes que nos assumíamos entre pares como cobardes por igual.

De entre todos da trupe, o Renato era o mais franzino.

Se todos vivíamos com dificuldade, em casa dele vivia-se ainda pior. O sustento era garantido pela mãe que trabalhava a dias em casa das senhoras das casas grandes e que viviam na frente dos prédios.

Nós, os bastardos da vida, vivíamos nos pátios interiores, húmidos e sombrios, onde o sol só chegava em agosto quando estava a pique.

Um tanque, um estendal e uma latrina eram o essencial partilhado pelas três ou quatro famílias amontoadas naqueles poucos palmos entre muros.

O pai, esse, despejava os latões do lixo para a ramona na Câmara e no verão lavava as ruas à mangueirada, nos intervalos de tempo que lhe sobravam de quando estava no Tavares a escorripichar copos e o juízo.

Numa tarde em que o tempo estava cinzento e frio e os banhistas já tinham desocupado a cidade, a cachopada estava toda a brincar no jardim.

Havia por lá uns baloiços e uma roda e o guarda, porque era época baixa e porque igualmente partilhava da nossa miséria, abria-nos a cancela e por lá brincar à borla.

Desatentos ao perigo não demos conta da chegada dos gémeos.

Num piscar de olhos estavam ali, um deles saltou a cerca e nós cordeiros prestes a sermos sacrificados, fugimos.

Para lá da cancela o outro esperava-nos para o calduço, pontapé, rasteira.

Cada um levou a sua dose, mas o Renato tinha ficado para trás e viu-se entre os dois.

Na sua ferocidade animalesca, agarram-no de pés e mãos e lançaram-no para o lago.

Saciados na sua bestialidade foram-se embora tal como chegaram.

Fugimos acabrunhados, mas o Renato não se despachava. Fomos ao que se passava e confidenciou-nos o medo maior da bebedeira do pai quando lhe perguntasse porque estava ensopado.

Um de nós lembrou que lá em casa havia um aquecedor de resistência, mas que só se podia ligar nas noites em que o frio ameaçasse cortar a vida.

Arriscámos todos em nome dele um pacto de que havíamos de arranjar maneira de juntar umas moedas para pagar a eletricidade esbanjada naquela urgência.

Despimos o Renato e naquela réstia de calor sacamos a roupa ao Renato. O vapor de água subia e embaciava a janela da salita.

Todos jurámos ter visto a silhueta enorme dos gémeos refletida nos vidros.

Por cada peça de roupa que ia ficando menos molhada, por cada vez que um de nós dizia que assim não podia ser, a silhueta dos gémeos foi-se apequenando e o nosso medo com ela.

 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990