Opinião
Memória
Julia Boyd foi descobrindo, camada por camada, memórias e registos rigorosos desta alteração ao longo dos anos
Oberstdorf, uma pequena aldeia nos Alpes da Bavaria que se transformou em estância de esqui e destino turístico de referência tem um segredo que não é perceptível num primeiro olhar.
O incauto visitante perdido entre a beleza das montanhas e o amontoado de hotéis e pistas de neve dificilmente se aperceberá do precioso arquivo de memórias que ela guarda ciosamente. Para isso talvez mesmo o melhor seja ler A Village in the Third Reich: How Odinary Lives Were Transformed by the Rise of Fascism, de Julia Boyd.
O livro, de 2022, não tem edição portuguesa, é a história de aldeões alemães e de como as suas vidas se alteram radicalmente na primeira metade do século passado, mais precisamente após a ascensão de Hitler ao poder e a rápida invasão pelo nazismo das práticas comuns, das tradições e das relações pessoais.
Oberstdorf deixou de ter exclusivamente atividades ligadas ao campo quando foi construído um hotel nos anos 20. Os primeiros sinais de mudança são portanto de prosperidade, hordas de turistas vêm do norte com carteiras recheadas ver os montes e as vacas a pastar, respirar ar puro e divertir-se. A aldeia habituou-se assim à diferença. Eles eram ricos e ali era-se pobre, eles eram protestantes e ali era-se católico, muitos eram judeus e isso não interessava nada. Até que tudo mudou.
Julia Boyd foi descobrindo, camada por camada, memórias e registos rigorosos desta alteração ao longo dos anos. As grandes cidades ficavam longe, as “manifestações” nazis com o seu festival de xenofobia e brutalidade passavam-se noutro mundo. Até entrarem na aldeia, nas casas, nos quartos e nas camas.
O pormenorizado rol de vigarices, traições e medos que trespassa a vida desta gente é notável, de tão próxima que está de nós, na forma como reconhecemos aqueles que nos rodeiam. Aqui e agora.
Sabemos isto porque os arquivos da aldeia nunca foram beliscados, a guerra das bombas e dos soldados era noutro lado. Arquivos como mania local: a senhora que guarda todas as cartas do marido que morreu em 14, todas as cartas do filho morto em 44, o jornal local, as atas da junta e das reuniões de agricultores. Tudo. Só por isso sabemos o que sabemos.