Opinião

Música | A gente não lê

28 fev 2022 15:37

As desigualdades sociais continuam a fazer sentir-se nas fruições culturais, e sim, os exemplos – ou a falta deles – começam em casa

O chamado boom do rock português (1980 - 1982) meteu o país a cantarolar rock na nossa língua, do Xico Fininho aos Cavalos de Corrida, da Chiclete ao Portugal na CEE. Tudo isso teve uma causa, as condições sociais e políticas herdadas da revolução de 1974 trouxeram uma deslocação de referências com a saturação da luta política nas canções a ser trocada por desejos, estórias e personagens da vida comum.

Apesar de alguns problemas persistirem até hoje, decidiu-se cantar mais sobre o quotidiano e menos sobre desígnios políticos. No entanto, não havia como escapar dos anos de ditadura, fascismo e atraso que Portugal vivia, num estado profundamente traumatizado. O grau de alfabetização era baixíssimo, tão reduzido que, António Manuel Ribeiro dos UHF decidiu que se queria comunicar com as pessoas através das suas canções tinha de ser em português e não em inglês que poucos percebiam. 

A condição social foi, ao segundo disco de Rui Veloso, Fora de Moda, de 1982, brilhantemente traduzida pelo letrista Carlos Tê, quando escreveu a canção A Gente Não Lê: “De que nos vale esta pureza / Sem ler fica-se pederneira / Agita-se a solidão cá no fundo /Fica-se sentado à soleira /A ouvir os ruídos do mundo / E a entendê-los à nossa maneira /Carregar a superstição / De ser pequeno ser ninguém / E não quebrar a tradição /Que dos nossos avós já vem”. 

Isto tudo a propósito do recente relatório que diz respeito ao Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020, levado a cabo pelo Instituto de Ciências Sociais, encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian. As desigualdades sociais continuam a fazer sentir-se nas fruições culturais, e sim, os exemplos – ou a falta deles – começam em casa. 

É preciso resistir à tentação snob de julgar a falta de leitura dos cidadãos e ir no encalço das causas. Alguns dos inquiridos (mais velhos) ainda têm pais ou familiares analfabetos, daí estes nunca os terem acompanhado a uma livraria ou oferecido um livro, por exemplo. É por isso que os recentes populismos e discursos inflamados sobre “parasitas”, “rsi” e outras tontices têm de ser desmontados. Ainda hoje vivemos consequências de uma ditadura e querem lá voltar outra vez? Há quem não leia por falta de tempo e outros por preguiça. Como em tudo. Sim, não vem tudo nos livros. 

A sabedoria popular supera, por vezes, o desajuste académico. Porém, a “escola da vida” é mais usada como arma de arremesso contra quem quer estudar, do que como complemento. Não é uma coabitação fácil. Conheço pessoas que trabalham desde o fim da meninice e está tudo bem. No que toca a mim, ter voltado a estudar já em adulto, salvou-me a vida. Em que é que ficamos? Ficamos nesse terrível exercício que é o equilíbrio.