Opinião
Música | Esquizofonia de Natal: que comecem as festividades
Uma cidade criativa na área da música, reconhecida pela UNESCO, deveria ter isto em conta
De há uns anos a esta parte, o Natal é inaugurado com o gesto simbólico de ligar as luzes. Acaba a Black Friday e entra a rabanada sonora e luminosa natalícia que faz as delícias de muitos, com o telemóvel para a selfie da praxe.
Longe vão os tempos de os ruídos pré-industriais serem apenas de voz humana. Hoje, se não rebomba, não impacta. Carlos Fortuna, professor da Faculdade de Economia de Coimbra, foi premiado recentemente com o Prémio Análise Social (2020), pelo artigo: “O mundo social do ruído. Contributos para uma abordagem sociológica”. O texto convida a uma reflexão sobre a cidade.
Diz o texto que com a entrada em cena de “novos meios e agentes sonoros (fábricas, comboios, automóveis) opera-se uma verdadeira revolução sonora”. Estes sons urbanos evoluíram para o que o autor Goldsmith chamou de “sons fora do lugar”. O antigo ressoar dos rodados das carroças ou dos sinos, deu lugar a que outro autor, Murray Schafer, chama de esquizofonia.
Há, segundo Fortuna, uma “perda da identidade das paisagens sonoras dos lugares – a oralidade, o folclore, as tradições ou as expressões artísticas e comunicativas locais – que ficam sujeitas à desestruturação sonora provocada pela amálgama ruidosa da cidade”. E assim chegamos ao trânsito dos centros urbanos, à música das lojas comerciais e sim, às Aldeias do Natal desta vida.
Há um “novo paradigma dos sons urbanos – em que se multiplicam, complexificam e intensificam as sonoridades quotidianas até ao ponto de se perder a cristalina identificação das fontes sonoras de outrora e a cadência da sua ocorrência”, prossegue o autor.
Todos os anos, na cidade de Leiria, há queixas por causa do ruído natalício, residentes do centro urbano que não querem uma coluna à porta de casa, nem até alguns comerciantes, que supostamente beneficiam da animação. E sim, algumas colunas são desligadas à revelia.
O texto de Carlos Fortuna chama a atenção para a “amálgama auditiva obsessiva ou descoordenada (…) interessa sobretudo referir o facto de a perspetiva médica da perigosidade do ruído surgir associada a políticas públicas de ordenamento territorial”, esclarece o professor.
Pensar a cidade também tem de passar por refletir na “redução do sentido comunicativo interpessoal e perda da identidade vocal e sonora das comunidades e dos lugares”, aponta.
O que torna este texto verdadeiramente extraordinário é a capacidade de ter uma “escuta sociológica”.
Fica o convite: “O objeto é desafiador: trata-se de esclarecer como se revelam hoje, entre nós, as disputas públicas em torno das sonoridades e dos ruídos. Sociais, políticos e urbanos”.
Uma cidade criativa na área da música, reconhecida pela UNESCO, deveria ter isto em conta.
Boas Festas!