Opinião

Música | Jorge Palma mal citado e a apropriação de um legado

5 nov 2021 16:30

O primeiro-ministro usou uma letra do cancioneiro português para, na ausência de melhores ideias, não ficar calado

Nos últimos dias da discussão do Orçamento de Estado (OE) o primeiro-ministro usou uma letra do cancioneiro português para, na ausência de melhores ideias, não ficar calado. Mais valia. Deslumbrado e socraticamente arrogante – como quem mantém um ministro que ninguém quer - citou grosseiramente Jorge Palma e às vezes sem acertar na letra.

Instrumentalizada e sobretudo maltratada, “Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar”, merecia melhor interlocutor. É o clássico sintoma de quem usa a cultura apenas como arma de arremesso e dela nada faz de produtivo.

A sério, parem com isso! Já nos bastou uma vez o Santana Lopes a dizer que gostava dos “violinos de Chopin”, obra que nem existe. Fosse aquela longa salva de palmas - no final do OE chumbado - para quem as merece e não para um PS que as fustiga, o país não precisava de raspadinhas para financiar o património.

Tal como ter medidas aprovadas, mas nunca aplicadas - e de ter na legislatura votado mais vezes ao lado da direita - um orçamento de 0,25%, como é o da Cultura, não resiste aos factos. É outro simulacro, brincar um poucochinho às esquerdas. Uma espécie de letra dos Deolinda quando dizem “vão sem mim que eu vou lá ter”. Leia-se o livro Ziguezagues na Política de Pedro Prostes da Fonseca, para perceberem certas convicções variantes.

Como mostrar a algum PS, que enche a boca a dizer que é de esquerda, mas que apoiou Marcelo, distanciou Ana Gomes e quer uma maioria, na sua forma, à la Cavaco? Para os mais distraídos, saibam que a Cultura não é um Banco ou uma barragem a quem se isenta milhões em imposto de selo. Estes dois últimos exemplos sim, “comem tudo e não deixam nada”, como dizia Zeca Afonso e para continuar nas evocações.

A educação nas escolas e nos ambientes sociais de cada um podem desempenhar um papel conciliador. À medida que diversos estudos avançam, percebe-se que há muita gente que acha que “isso da cultura não me diz respeito”, e desinteressa-se ao ponto de a repulsar. A sua falta de investimento faz o resto.

Com a graça possível, a melhor piada que ouvi pós chumbo OE foi aquela: “Direitos laborais? Direita: não! PS: como diria Zé Mário Branco ou Sérgio Godinho, não!”.

Talvez se aplique melhor a este PS uma outra letra de Jorge Palma: “Deixa-me rir / Essa história não e tua/ Falas da festa, do sol e do prazer / Mas nunca aceitaste o convite. Tens medo de te dar/ E não é teu o que queres vender. Deixa-me rir / Tu nunca lambeste uma lágrima / Desconheces os cambiantes do seu sabor / Nunca seguiste a sua pista/ Do regaço à nascente/ Não me venhas falar de amor”.

Sim, escrever sobre música também é isto porque música e cultura são um direito humano. Queriam só bailarico, era?