Opinião
Música | O Operário Temente
Discos póstumos têm uma aura especial. O último de Leonard Cohen, Thanks for the Dance, não é diferente, mas sugere a intenção de construir o capítulo final de uma carreira longa e profícua.
O título denota a característica que sempre se reconheceu ao autor, a humildade, neste caso num agradecimento por ter podido viver do seu pequeno dom para a escrita: “foi um inferno / foi agradável / foi divertido.”
Happens to the Heart, uma análise ao que foi a sua vida, confirma a tendência para ver este disco como uma tentativa de conclusão. O homem que “sempre teve um trabalho regular,” ao qual “nunca chamou arte,” pega numa “velha convenção” estrutural e desenha o mapa da sua vida.
No fim, o trabalhador, que encontrou um equilíbrio na confluência entre “ir ao encontro de Cristo e ler Marx,” acaba por assumir que não há lições a retirar: “não há nenhuma fábula, nenhuma lição/nenhuma cotovia melodiosa / apenas um pedinte sujo a conjecturar / o que acontece ao coração.”
Por baixo da aparência de cantor famoso está um homem com defeitos, ainda para mais com poucas capacidades vocais.
Mesmo que diga nunca ter chamado arte ao que faz, a descrição de Cohen parece justa quando acentua as contradições que se lhe podem apontar: o galã que se vê como um mendigo, o pedinte que sobrevive a fazer canções famosas, o crente que não vê Marx como vilão.
Pese embora o tom de síntese, estas canções fariam sentido em qualquer disco de Cohen.
Os temas de sempre estão lá: o cigano errante que não se pode comprometer, o homem que está só de passagem (quer num sítio específico, quer na vida em geral), as mulheres que não quer magoar (mas que invariavelmente magoa), a falta de jeito para assuntos práticos ou a dificuldade em conciliar visões distintas do mundo.
Também as técnicas são as de sempre: as alegorias, tendencialmente religiosas, as metáforas abrangentes e ousadas, as ocasionais meta- referências e a tendência para estruturas suportadas por opostos contrastantes. Tudo soa a Cohen, mesmo a voz desgastada.
Numa das canções que se constroem pelo jogo entre opostos, It’s Torn, antevê-se uma das razões que faz com que o disco final se pareça com outros: “os opostos vacilam,” isto é, a técnica começa a ficar debilitada.
O que se insinua é que morrer pode ser equivalente a perder as capacidades técnicas que lhe garantem o trabalho regular de que vive.
O cativo na “prisão dos prendados” cessa de existir, não só metaforicamente, quando o seu dom deixa de se manifestar: “não é bonito, não é subtil / o que acontece ao coração” de alguém que vive da escrita quando a “página fica demasiado branca” e “a tinta muito ténue.”
Cohen acaba a vida agradecendo por a dança ter durado até ao fim, agradecendo a sorte de ver a morte técnica e a morte física coincidirem.