Opinião

Não temos mesmo juízo

24 out 2017 00:00

Numa tarde de Outono há dez anos, fui chamado a um gabinete de um juiz de Instrução. Tinha um caso em tribunal contra um ex-elemento dos Moonspell, a minha banda, sobre o registo ilegal da marca/patente do grupo, bem como o registo ilegal em sociedade de autor de obras que não pertenciam de todo a esse elemento.

Mal saio do gabinete ligo à minha advogada e digo-lhe: “dra.o nosso caso vai ser arquivado.”Ela responde-me :”Não, não é possível, Fernando. Temos o caso bem montado e a verdade está do nosso lado, não se preocupe.”

Passada uma semana, saía o despacho de arquivamento, que, felizmente, estava tão mal-feito que conseguimos recorrer e, posteriormente, em tribunal demos como provada a nossa matéria.

Ainda assim, a Justiça recorreu a uma harmonização com a Lei Alemã, e apesar de considerar a nossa prova como válida e nos ter dado razão, isso não teve nenhum efeito no réu, que nem sequer foi obrigado a mudar os registos e a devolver-nos o dinheiro que nos tinha roubado.

Passados uns meses, estávamos nós a dar-lhe ainda mais dinheiro num acordo-extrajudicial do qual não posso, por lei, contar os detalhes. Assim, resolvemos o nosso caso, gastando dinheiro do nosso trabalho e poupanças.

Quem ficou a ganhar: o sistema, os nossos advogados e o réu. Nós não ganhámos nada. Comprámos sim o que já era nosso e que nosso se tornou, permitindo-nos continuar a ser uma banda, a trabalhar, e a lutar pelo nosso sustento e sucesso.

Talvez tenha sido um erro estratégico levar o caso ao Criminal. Afinal, como me disse o meu amigo juiz, enquanto coçava a caspa com um lápis e consultava o panfleto do magusto da Polícia Judiciária: “também não estamos aqui também a falar de uma obra de Mozart ou de Beethoven.”

Não sr. dr. juiz, não estamos a falar de Mozart, estamos apenas a falar da minha vida, da vida dos meus colegas e de toda a gente com que trabalha connosco. No big deal.

Concedo que os crimes tenham como que uma hierarquia. Sim, roubar música, não é o mesmo do que matar ou que violar, mas eu não sou juiz, tenho o direito de fazer este comentário.

Penso que a função do juiz é, interpretando, fazer cumprir a Lei que estudou. Admito ainda que toda a formação pessoal, leituras, jurisprudência legal e feitio do juiz possam até ser factores que o conduzam a uma decisão justa, consentânea com a Lei e com os direitos dos cidadãos que recorrem aos tribunais.

Um crime é um crime para um juiz mas se todos os crimes são iguais, há uns mais iguais do que os outros.

Nesse particular destaco o crime da violência doméstica e refiro-me ao medieval despacho da Relação do Porto, de 11/10, que censura moralmente uma vítima de violência doméstica, fundando-se em passagens da Bíblia e no hábito social de considerar o adultério (das mulheres) como vergonhoso e imoral. Neste contexto, atribui pena suspensa ao(s) agressor(es), alavancada no argumento da traição conjugal. 

O Conselho de Magistratura faz a típica magia portuguesa: afasta-se das declarações mas justifica a plenipotência dos juízes que, segundo esta tendência, poderão perfeitamente citar o Mein Kampf , de Hitler no próximo despacho que fizerem.

Critica mas não condena, nem sequer transmite aos juízes com tendências de Inquisidores medievais, uma mensagem de censura. Os agressores vão em liberdade, a vitima sofre mais uma humilhação e desta vez a sua história torna-se viral e os juízes vão ao magusto da Polícia e quem sabe até se não contratam uma stripper para lhe beber água-pé das mamas.

Acredito na Justiça Portuguesa. O Caso Furacão, o BPN, o BES, a prisão efectiva de malfeitores, têm-me dado esperança de que algo mudou e que se, ainda muito há por fazer, estamos a entrar numa era em que o poder, o dinheiro e o prestígio podem ser demolidos por uma justiça limpa, estruturada e eficaz.

No entanto, este despacho baralha-me as contas. Num país em que o crime da violência doméstica é grave, continuado e diário, dar este generosa impunidade aos agressores é o mesmo que soltar um cão raivoso para dentro de uma arena de luta de cães.

Se lermos muito bem o despacho, podemos traduzi-lo para bom português das ruas: “então é assim: ela 'meteu os cornos' ao marido, segundo a Bíblia, o adultério é pecado, ele então deu-lhe com uma barra de ferro 'nos cornos', ela foi para o hospital, ele para a esquadra mas não tem de ficar preso ou sofrer consequências por isso. Afinal, ela mereceu que ele lhe partisse a cabeça porque lhe meteu os palitos e isso é que não pode ser.” Despache-se.

A opinião pública também tem muito que crescer. Ainda agora falava um “advogado” aos microfones do Forum TSF e dizia que as penas suspensas dos agressores de violência doméstica (que, pelo visto, são habituais) são assim porque, na verdade, a pessoa que agride não tem um historial de criminalidade, foi “só aquilo”. Depois, desdiz-se e diz que afinal a violência domestica é um crime complexo e que por isso é tão difícil penalizar. 

Bem, eu não sou dr., mas o atirador de Las Vegas que matou e atirou sobre uma praça cheia de gente na América também não tinha historial criminal e “fez aquilo”. Será que teria uma pena suspensa, se não se tivesse matado?

Que complexidade pode haver em alguém ser agredido pelo seu companheiro ou companheira, seja porque razão for, e ir à Policia e levar os casos a tribunal? É assustadoramente simples para ser considerado complexo ou para que isso leve ao desencorajar de fazer queixa e confiar na Justiça, quando “se dorme com o inimigo”.

Nós, as gentes sem canudo, dependentes da net, dos jornais, do que o vizinho diz no café, temos de começar a usar o nosso senso comum e parar de eleger Isaltinos, de desculpar criminosos, ou de achar que os juizes têm mais moral que nós. Isso não é verdade.

A nossa participação é importante e devemos confrontar sempre que possível a Lei, não a que está escrita porque essa deveria ser justa, mas os agentes que a desrespeitam quando a juraram honrar. 

Se estes juízes gostam tanto da Bíblia deviam ter ido para padres. O nosso Estado é laico. 


Se estes juízes acham que o adultério é razão para espancar uma mulher, deveriam ir de imediato para países onde se vive assim e habitar em sítios que ainda são bíblicos o suficiente para acolheram a sua perfeita moralidade.

Mas, na verdade, estes juízes deveriam ir mesmo era à merda porque não merecem artigos, nem o tempo que gastamos com eles.  São indignos para julgar seja quem for, cegos pelo ódio religioso e machista, envergonhando todos quantos lutaram e que querem estar num País que seja mesmo justo e digno do amor que lhe temos.

 

*músico e vocalista de Moonspell