Opinião
Numa realidade alternativa
Chegado à rua, J. olhou o edifício-casino Trump da sua zona e virou para a direita em direcção à farmácia
J. estava sentado no sofá. Melhor, J. estava enterrado entre as almofadas do sofá. Só os seus olhos denotavam que estava vivo ou, pelo menos, que não estava a dormir. J. olhava para a tela gigante que, na parede em frente, debitava imagens frenéticas da Popota, a Lenda do Natal, um hipopótamo-fêmea que tinha destronado o Pai Natal como rei do evento. O velhinho das grandes barbas brancas e barriga proeminente fora trocado por uma jovem roliça em trajes menores e muita lascívia.
A custo, J. tentou levantar-se do sofá e, ao fim de várias tentativas, lá conseguiu os seus intentos. Agarrou numa embalagem de Soma, tirou um comprimido e engoliu-o. Agitou a embalagem, mas não caiu mais nenhum. Olhou lá para dentro e percebeu que estava a tomar o último. Agarrou num casaco, abriu a porta da rua e saiu de casa. Na tela gigante o último êxito do momento, um discurso de Marine Le Pen, a presidente francesa que, nos últimos anos tinha conseguido tornar populares muitos dos seu discursos. J. já não ouviu o discurso, pois já tinha saído porta fora, mas conhecia-o. Havia, aliás, algumas passagens que até sabia de cor e que por vezes repetia, como uma ladainha.
Chegado à rua, J. olhou o edifício-casino Trump da sua zona e virou para a direita em direcção à farmácia. Com as mão nos bolsos, a cabeça descaída sobre o peito e com o casaco a proteger a cara do vento e do frio que o atacavam, J. caminhou ao longo da rua, olhando os cartazes holográficos motivacionais que lhe sugeriam o que fazer: comprar, obedecer, aceitar, não-acasalar, não- -trair, não-beber, tomar-soma, trabalhar, rir, não-chorar...
*Cineasta
Leia mais na edição impressa ou torne-se assinante para aceder à versão digital integral deste artigo.