Opinião
O Deus dos Livros
Não podemos deixar o futuro da leitura nas mãos de interesses comerciais, ou que seja contaminado pelo avanço tecnológico
“Eu sou um Livro. Quem me tomar por um Homem engana-se muito”, afirmou Camilo Castelo Branco. É consensual que a leitura é fundamental para a existência humana. E que não é uma habilidade periférica, a delegar apenas na educação ou escolaridade.
A prática da leitura é uma forma profundamente transformadora do conhecimento e da cultura, moldando o pensamento e, consequentemente, a forma como uma sociedade é organizada. Diz respeito aos indivíduos de todas as idades.
As habilidades leitoras fazem parte do bem-estar humano e são necessárias para o desenvolvimento e compreensão mútua, sendo uma importante base para a plena participação na educação, na cidadania, na aquisição da linguagem, na economia, na política, na intervenção comunitária e cultural das sociedades contemporâneas, incluindo o humanismo como forma de libertação pessoal, emancipação e empoderamento.
Uma sociedade democrática saudável, centraliza-se no consenso informado de uma comunidade multilateral e multicultural, requerendo leitores resilientes, bem versados nas práticas de leitura, em distintos níveis de envolvimento e capacitação, para que uma democracia opere adequadamente.
Não podemos deixar o futuro da leitura nas mãos de interesses comerciais, ou que seja contaminado pelo avanço tecnológico. Necessitamos, em vez disso, de políticas concertadas que garantam uma educação que possibilite um legado existencial e colectivo, assente na linguagem como um reduto de concórdia e sabedoria.
Toda a elaboração de políticas deve basear-se na consciência deste valor intrínseco, mas também, em bases empíricas sólidas sobre as suas virtudes e impactos. “A Guerra é o que acontece quando a linguagem falha”, afirma Margareth Atwood. A sociedade enfrenta transformações fundamentais, à medida que as tecnologias digitais mudam a forma como se aprende, estuda, vive, interage, trabalha e lê.
Embora a digitalização ofereça muito potencial para novos processos de leitura, pesquisas recentes mostram que há um impacto negativo na leitura, em particular, no tempo de leitura e interpretação, na leitura crítica e consciente, na leitura lenta, na leitura não estratégica e na leitura longa. Talvez, por isto, Umberto Eco afirmasse que «As bibliotecas podem tomar o lugar de Deus». Nesta quadra natalícia que se avizinha, possamos fazer dos livros uma primeira estrela ou uma permanecente casa da alma.