Opinião

O dia último

15 dez 2022 16:25

Há coisas muito difíceis de entender porque são demasiado grandes para nos caberem no tamanho do peito

Há coisas muito difíceis de explicar porque são um deserto carregado de desconhecido que nos invade, e nos divide entre a ânsia desmesurada por uma normalidade salvadora e a espera despedaçante e paulatina pela chegada do momento terminante depois do qual a vida terá necessariamente que mudar.

É assim que por entre o susto e a incredulidade se consegue pensar num jogo de futebol, apiedar de lágrimas alheias, beber um chá a conversar banalidades, falar da inflação com o funcionário da estação de serviço, ou dar uma aula com a mesma inteira disponibilidade.

Há coisas muito difíceis de pensar porque significam um nunca acabar de nunca mais que para sempre nos abrirão buracos na vida impossíveis de cerzir, e nos deixam em demasiados momentos a sobrar, quase inúteis, como uma meia perdida do par. É assim que se pensa em como voltar a chegar a casa, como cumprir o ritual de sábado, o que fazer à cumplicidade de uma graça antiga, ao programa de televisão dos dois, aos telefonemas, e ao que soa o nosso nome dito por aquela voz.

Há coisas muito difíceis de entender porque são demasiado grandes para nos caberem no tamanho do peito.

É assim que pensamos no nosso mundo depois do dia último, sabendo que será exactamente o mesmo mas que nunca mais será igual, sem sabermos como será então; é assim que olhamos um cadeirão vazio, e o quarto, e a janelas da casa vistas da rua, e a cadeira de jardim arrumada junto ao guarda sol, e o cinzeiro de toda a vida, o sobretudo, os óculos, o livro, a cama, e nos concentramos na vacilante existência de quem os deveria ocupar, para que assim a presença possa ainda pertencer ao lugar, ao objecto para que assim a presença ainda não se esvaia, embora já não possa lá voltar.

É importante falar da morte antes de acontecida, antes das saudades e das lágrimas, antes das lembranças à tona das conversas, antes do dia em que a vida muda, necessariamente, sem que quase nada vá parecer ter mudado.

É importante falar da morte enquanto ainda há uma vida a acontecer devagarinho, enquanto o coração é só aperto disfarçado na atitude e na acção, enquanto se guardam desveladamente todas as palavras, todos os olhares, e todos os pequenos gestos, enquanto ainda se sente o calor e o cheiro da pele, enquanto ainda se pode dar a mão, enquanto a nossa voz ainda pode ser ouvida a dizer o quanto se ama, enquanto ainda é tempo de se ser dois.

É importante falar do inevitável que tanto desejamos ignorar, para termos tempo de o ir compreendendo e aceitando até que o caminho chegue ao dia último, e a cratera que então se abra possa encher-se, um pouco, com paz.

Num quarto espaçoso, tranquilo e iluminado, o “nós” deste escrito sou eu, e o outro dos dois é o meu Pai. As horas, os dias que ainda houver, serão o lento desvendar de um mistério, serão uma aprendizagem silenciosa, serão uma partilha dura, serão um completar de quem sou, e serão a mais dolorosa certeza do amor e da vida.