Opinião
O futuro é uma coisa do passado
Nestes dias de futuro nebuloso, alguém teria de ganhar coragem para entrar na casa decadente. Podre e vazia de nós.
Foi-se adiando por tanto tempo, mas algum dia teria que ser, avó. Não que estejas cá para entender o tédio absurdo dos dias de agora.
Que sabes tu, afinal, desde os tempos em que fingias saber tudo?
Que sabemos nós destes dias novos? Que sabias tu, afinal?
Nestes dias redundantes, alguém teria de ganhar coragem para entrar na casa decadente.
Podre e vazia de ti. A casa tabu. Memória inviolável a cair aos bocados de écharpe posta e cabelo armado.
Colar, às vezes, quase sempre na alma e quase nunca no corpo.
A casa imutável de vida feita fortaleza. Que sabias tu, afinal?
Nestes dias de futuro nebuloso, alguém teria de ganhar coragem para entrar na casa decadente. Podre e vazia de nós.
Um cenário exponenciado deste mundo que não corre agora também.
O retrato exagerado das histórias em pó suspenso nas coisas que ficam para sempre depois das pessoas.
Vai-se adiando o tempo, mas algum dia teremos que voltar às ruas, avó. E eu dou por mim a pensar se não deveríamos todos entrar primeiro na casa decadente.
Por mais que custe, pôr o dedo na ferida antes das mãos à obra em vida acelerada e irrefletida outra vez.
Como nas ruas desertas, enfrentar os corredores vazios da casa onde poucas são as coisas que importam, afinal, depois das pessoas.
Talvez a toalha de iniciais bordadas pelo tempo de outra geração.
A bandeja dos natais de prata.
A mesa trabalhada para resistir tanto quanto o casamento de uma vida inteira.
Os livros antigos com cábulas anotadas como pistas de uma descoberta colectiva que alguém tentou antes de nós.
Por baixo de todo aquele pó, descobrir o que fica afinal da vida depois da vida.
Talvez apenas as histórias que fui a tempo de reconhecer agora em cada coisa, de forma a que cada coisa sejas tu para sempre até ao fim de mim.
Um tempo que não chegou para todas as fotografias. Centenas de conversas a preto e branco que nunca poderei ouvir.
Caras sem nome em histórias esquecidas para sempre, a lembrar que o tempo de cada um de nós é do tamanho do tempo que damos aos outros.
Talvez o futuro seja uma coisa do passado, afinal.
Que sabemos nós, agora que fechamos a porta da casa decadente?