Opinião
Quero voltar a pensar na morte sem que isso me incomode a vida
Resumindo, ter de me comportar como uma sexagenária, agora todos os dias, e já não poder pôr essa máscara apenas no carnaval é, de facto, para mim muito cansativo.
Ufa, ser velho dá muito trabalho!
Não sei se aos outros acontece o mesmo, mas a mim os anos que vou fazendo obrigam-me a um esforço diário para que o encaixe da minha mente (que teima em não se achar velha) com a “antiguidade” do meu corpo (que eu e ainda mais os outros observam) aconteça dentro de mim de uma forma serena, equilibrada e não convulsiva.
E depois, depois ainda há aquele esforço de ter de viver cada dia como se fosse o último da minha existência e perceber que em tal feito eu sou de uma incompetência atroz!
Resumindo, ter de me comportar como uma sexagenária, agora todos os dias, e já não poder pôr essa máscara apenas no carnaval é, de facto, para mim muito cansativo.
Em busca desse equilíbrio e sem o respetivo labor temo, mais do que a morte, ser assolada pela tristeza de uma qualquer depressão que me impediria de deixar de ver e de me deleitar com o bom e o belo que a Natureza, viva ou inerte, me tem proporcionado e me faz tão feliz!
A este propósito confesso que as últimas semanas me têm dado muito trabalho.
Os motivos? Os discursos sobre a morte, feitos à volta da legalização da prática da eutanásia em Portugal e da infeção pelo COVID-19, andarem sempre associados ao sofrimento atroz e aos velhos.
Ora, ando eu aqui a tentar pôr em prática um pensamento que dizem ser de Confúcio - para quê preocuparmo-nos com a morte?
A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro - para que do lado de fora, ao colarem a morte de alguém sempre associada a um sofrimento sem remédio, me obriguem a preocupar-me mais do que com a vida, com a morte e tudo isto, só por ser velha!
E claro, ao ser todos os dias bombardeada como o teor de tais afirmações, tem-me dado muito trabalho equilibrar a coabitação da minha jovem e leviana mente com o meu corpo tão sensato, consciente dos anos que carrega.
Ainda bem que foram os parlamentares a ter de decidir se, sim ou não, tal passaria a ser legal, uma vez que eu andava, feita uma barata tonta, cheiinha de dúvidas.
Se por um lado, egoisticamente, quero ter para mim a possibilidade de pedir a alguém para me ajudar a morrer, sem prolongar o meu sofrimento inútil, temo que, no futuro, a progressiva desumanização das relações familiares possa levar pessoas com doenças terminais ou crónicas a sentirem-se um estorvo na vida dos seus e que seja esse o motivo que os leve a pedir a eutanásia.
Temo que a ciência, a que é paga por privados, continue insensível perante a dor dos descartáveis para o negócio.
Temo, como Nietzsche afirmou, que se julgue que é a necessidade que cria a coisa, quando é a coisa que, na maior parte das vezes, cria a necessidade.
Ora, com tantos temores, chegam-me as inseguranças e daí imaginem o trabalho que ando a ter.
Quero voltar a pensar na morte sem que isso me incomode a vida.
Tarefa árdua? Pois é, mas o que querem? Eu já me habituei a que ser velho dá muito trabalho!
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990