Desporto
A voar bem baixinho
No sábado, em Leiria, estiveram a convite dos Amantes dos Ralis, alguns destes heróis das quatro rodas para celebrar meio século de 'Rali de Portugal'
No sábado, no Kartródomo dos Milagres e nos Pousos (Leiria), alguns dos campeões nacionais de rali, heróis da velocidade perfumada a gasolina, estiveram presentes a convite do Grupo Amantes dos Ralis, para celebrar os 50 anos do primeiro Rali de Portugal.
Fomos falar com os veteranos, que guardam prateleiras cheias de troféus e baús recheados de memórias e com os aspirantes a semelhantes honrarias. Primeira lição: não é nas zonas rápidas que o verdadeiro piloto se revela. É nas lentas.
Quanto mais rápido for nesses troços e, simultaneamente, segurar o carro na trajectória óptima, mais evidente é a sua qualidade. Entre os pilotos, é comum dizerse que, nas zonas rápidas, "qualquer um pode conduzir", mas a qualidade, essa, vê-se nas lentas.
Ramiro Fernandes é um dos nomes incontornáveis, quando se fala de ralis em Portugal. Com 72 anos, desde os 14 anos que encetou uma ligação com o mundo automóvel.
Quando começou a trabalhar para a marca Fiat, por volta de 1971, iniciouse em provas. Primeiro, no Campeonato de Iniciados, em 1973, tendo sido sub-campeão, logo nesse ano. Acelerou durante quatro anos ao volante de um Fiat 127, tendo vencido o Rally do Benfica e depois passou para o Fiat Ritmo.
"Comecei no modelo 1300cc e fui até ao 2000TC. Pelo meio, fiz dois Ralis de Portugal, com um Spyder Abarth e, entre 1988- 1994, corri em Lancia 4wd e Delta Integralle." Ao todo, participou em 13 Ralis de Portugal e no campeonato nacional, incluindo as ilhas e Espanha.
Desse tempo, guarda amigos como o campeão do mundo Markku Alén. Havia muitas peripécias e, não raro, faltava a gasolina a meio de um troço. "As equipas de fábrica trocavam pneus a cada dois troços, nós fazíamos 20." Sair de estrada era proibido, mas os acidentes aconteciam.
Na Madeira, Fernandes caiu, no Abarth de matrícula IM-74-36, numa encosta, deslizando mais de 100 metros, sem controlo. Valeu-lhe o rollbar. O carro foi retirado, recuperado e voltou às provas.
O carro favorito era o Fiat Ritmo, com publicidade da Modas Fétal. No encontro de sábado, Ramiro pode conduzir, com olhos salgados de saudade, o seu antigo Fiat Ritmo, de há 30 anos. "Deu para reviver..."
Madrugadas à fogueira
"Nem sequer havia um carro na minha família." José Grosso, 50 anos, empresário do mundo automóvel, começa assim a sua história. A seu lado, está um Abarth 131, igual ao que Alén usou para vencer o Rali de Portugal três vezes.
É um dos seus grandes orgulhos. Antigo campeão nacional de ralis de regularidade, conta com vários prémios no palmarés."Na minha juventude, sempre que podia à Lousã, Arganil e Serra de Sintra ver as provas. O início dos anos 80 foi a época de ouro dos ralis, com os Grupos B.”
"Ter alguns destes carros na minha colecção é um sonho que foi inflamado pelas vezes em que ia dormir na serra de Arganil, ao lado de uma fogueira, para ver passar os carros", recorda. A colecção começou com um BMW 2002 e, hoje, conta com mais três carros de ralli... fora os outros.
"Além do BMW e do 131 Abarth, tenho dois Ford Escorts. Um deles era o antigo carro de Vasco Miranda e de Joaquim Jorge." Mas não se pense que os veículos ficam a ganhar pó na garagem. Sempre que pode, participa em ralis históricos. "Há quem coleccione jarras e quadros... a mim, deu-me para isto", brinca.
“Tenho medo de ser o pendura”
Carlos Cruz (foto de conjunto à esquerda) é um piloto de Leiria que entrou “a sério” na competição em 1995. "Comecei logo como piloto porque tenho medo de ser pendura. Um dia, fiz o Rali da Maceira, uma 'prova pirata'.
Ganhei o vício e concorri no campeonato, no Troféu AX", recorda. Em 1999, fez o campeonato e foi vice-campeão, com os mesmos pontos do campeão. O factor de desempate não lhe foi favorável.
"Em 2002, corri no Troféu Punto, após ter feito algumas provas do Grupo A. Agora, só participo de vez em quando." Até há pouco tempo, o piloto de 46 anos não tinha histórias marcantes de acidentes.
"Nem gosto de recordar, mas, há tempos, no Rali de Castelo Branco, atropelei um fotojornalista que se tinha posicionado na entrada para uma escapatória."
O carro saltou e uma das rodas de trás travou mais e o carro entrou em desequilíbrio e atravessou-se, conta o co-piloto, Paulo Sousa Santos. “O jornalista, que estava numa zona vedada aos espectadores, ficou um pouco maltratado, mas mais ninguém ficou ferido”, diz Carlos Cruz, adiantando que tudo parecia em câmara- lenta.
"O acidente demorou três segundos, mas pareceu um minuto. Na minha cabeça, perguntei dez vezes 'mas ele não sai dali?' Obviamente, que àquela velocidade, não dá tempo para perguntar isto. Mas, ali, eu olhava para ele, perguntava, tentava controlar o carro e voltava a perguntar se ele não saía dali... e não saía".
O computador humano
Ao lado de um piloto rápido, está sempre um homem ou mulher cujo trabalho é ser, literalmente, um computador para cálculos de velocidade e trajectórias.
Paulo Sousa Santos (foto de conjunto, centro-esquerda), 50 anos, advogado é o co-piloto de Carlos Cruz, tendo começado a correr com Paulo Bibi, outro piloto da região, num Citroën AX, no início dos anos 90.
Ao longo da carreia, alinhou com Carlos Almeida, piloto de Caldas da Rainha, e Tó Monteiro, também de Leiria. Histórias tem muitas e assim que começa a recordar, é difícil parar. As mais vivas são os amargos-de-boca e os acidentes.
Nunca a expressão “morrer na praia” lhe esmagou tanto o coração como naquela vez em que, com Carlos Cruz, em VW Golf, poderiam ter sido campeões e tiveram de desistir quase no final da última prova.
"Devido a um toque sem jeito nenhum. Numa curva, o carro deu um toque à direita numa curva e a transmissão ficou desencaixada”, conta. Chegados ao recinto final, o mecânico limitou-se a encaixar a peça e o carro ficou como novo. "Bastava ao Carlos ter ficado em 7.º da Geral para ser campeão. Foi azar.
“Julgavam que estávamos mortos”
Sustos a sério não teve muitos, mas a memória resvala sempre no mesmo. Foi o maior que teve. Aconteceu no Rali de Albergaria-dos-Doze, com Paulo Bibi aos comandos de um Peugeot 106, da equipa LPM Grupo Lena Competição.
Paulo recorda-se de uma curva especial. "Nos treinos, percebemos que, para a fazer depressa, era preciso meter a roda do lado direito na valeta, prendendo o carro. Ora, no fim-de-semana anterior à prova, a organização deu um jeitinho no piso.
Ao fazê-lo reduziram a altura da valeta de 25-30 centímetros, para cerca de dez. No dia da prova, íamos em quarta a fundo, a 120/130 km/h, quando o Bibi meteu o carro no sítio estudado. A roda não se segurou e saímos de frente. Foi um acidente feio, com várias cambalhotas".
O 106, diz, não tinha uma única peça direita. Foi para a sucata. "O público julgava que tínhamos morrido e ninguém se aproximou." Os dois Paulos, Bibi e Costa Santos, não sofreram um arranhão. Valeu-lhes o rollbar.
Celebrar os campeões
“Quando bateres, bate a fundo”
Vários são os nomes que se destacam no mundo do automobilismo nacional. Joaquim Santos, Santinho Mendes ou António Coutinho fazem parte da lista. No sábado, no 14.º Encontro dos Amantes dos Ralis, Carlos Bica à direita em cima) e Rui Madeira (ao lado esquerdo) estiveram sob os holofotes.
Quando Madeira, campeão do Mundo de Produção, em 1995, ao volante de um Mitsubishi Lancer, recebeu o título no Rali da Catalunha, foi a primeira vez que uma equipa portuguesa alcançou um título mundial de automobilismo.
As aventuras ao volante deste arquitecto começou em 1989, na equipa do "padrinho", Carlos Bica, tetra-campeão nacional de rali (1988, 1999, 1990, 1991), no Troféu Marbella.
"Desde muito novo que o meu sonho era competir. Entrei na universidade e o meu pai acedeu a deixar-me fazer competição. O Carlos Bica, pai, convenceu-o. “Comprámos um Seat Marbella, já a meio do troféu e fizemos as últimas três provas, que correram bem. No ano seguinte, fiz o campeonato e ganhei o Troféu Marbella."
No ano em que foi campeão do mundo, não embarcou em alegrias precoces. Geriu prova a prova, sempre com sangue frio. " O Rali da Catalunha foi feito "com o coração nas mãos", porque o carro estava com um problema de gestão electrónica.
Segredo para se ser campeão? Não há. "Ser o melhor dá muito trabalho e é precisa muita vontade e confiança." Já Carlos Bica nasceu em Celavisa, junto a Arganil, a catedral portuguesa dos ralis, e desde miúdo que se habituou a ver passar o Rali de Portugal.
Quando tinha 14 anos, passava Setembro em Celavisa e o pai, também Carlos, atestava o carro da família ao sábado de manhã e Carlos, filho, só tinha de lhe entregar a viatura no domingo, às 17 horas, com combustível suficiente para chegar a Góis à bomba de gasolina.
"Enquanto houvesse gasolina, andava sempre no meio das serras a acelerar", diz. Quando não estava em Arganil, vivia em Almada. "Fiz amizade com Alén, Kakunen e Walter Röhrl. Certa vez, eu e o Röhrl estávamos neutralizados na Lousã e ele perguntou por que não levávamos os motores até ao corte. Ao limite. Perguntei-lhe quantos motores rebentava por ano.
'Entre 14 a 20', disse. 'Pois, mas este aqui tem de me fazer o ano todo', retorqui. Já o Alén dizia-me, 'quando bateres, bate a fundo, que é a melhor maneira de não bateres. Nunca pises o travão!'" Bica terminou a carreira em 1991.
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