Sociedade
Bairro da cimenteira, uma “mini- -cidade” onde “nada faltava”
Através das memórias de quem viveu ou ainda reside recordamos a história do bairro de pessoal da fábrica de Cimentos de Maceira-Lis, que funcionava quase como um “mini-estado".
O casario de rés-do-chão, em estilo alemão, ladeia as ruas de cimento, ainda as originais, construídas nos inícios da década de 20 do século passado. A separar as casas da estrada, pequenos jardins, alguns ainda bem tratados.
Reina a tranquilidade, interrompida aqui e ali pela passagem de um ou outro carro, que contrasta com a agitação de outros tempos.
Do tempo em que todas as casas do bairro de pessoal da fábrica de Cimentos de Maceira-Lis estavam ocupadas e com muitos trabalhadores em lista de espera.
Do tempos em que havia duas escolas a funcionar, “cheias” de crianças que, à tardinha, transformavam as ruas num amplo recreio, ou de quando a Casa de Pessoal se engalanava para bailes e matinés de cinema.
Hoje, grande parte das cerca de 70 casas está desocupada. O mesmo acontece com os edifícios que em tempos davam apoio ao conjunto habitacional e que faziam do bairro da cimenteira “uma mini-cidade”, onde “nada faltava".
Havia posto médico, com maternidade, gabinete de dentista, raio-x e farmácia, escolas, balneários, casa de espectáculos com cinema, cooperativa com mercearia, cantina, restaurante, piscina e outras instalações desportivas (campos de futebol, basquetebol e voleibol, ringue de hóquei em patins e pista de atletismo).
Havia também posto de correio, que é, a par da farmácia, o único serviço que continua a funcionar. “Era uma cidade. Tínhamos aqui de tudo”, recorda Manuel Leitão, de 85 anos e um dos poucos habitantes do bairro, onde residem apenas alguns antigos trabalhadores da cimenteira, agora reformados, ou viúvas de ex-funcionários. “Há quatro gatos por pessoa e três viúvas por viúvo”, brinca o morador.
Manuel nasceu no bairro há 85 anos e aí viveu toda a vida. O pai, natural de Tondela, chegou à Maceira em 1924, um ano depois da inauguração da fábrica, empreendimento que resultou do pioneirismo de Henrique Sommer e da capacidade de execução do engenheiro José Rocha e Mello, que transformou, para sempre, não só o lugar da Gândara, um sítio inóspito onde nada havia, mas também a freguesia da Maceira.
Da “ilha da madeira” ao bairro
Com a entrada em funcionamento do complexo fabril, em 1923, tornou-se “urgente solucionar as questões relacionadas com a insalubridade das barracas de madeira onde residiam os operários”, observa Tiago Clérigo na sua tese de mestrado, intitulada Habitar a Utopia – O complexo da fábrica de Cimento da Maceira-Lis.
Nesses primórdios, muitos dos trabalhadores - que, tal como o pai de Manuel Leitão, tinham acorrido à Maceira vindos do vários pontos do País à procura de trabalho -, viviam na “ilha da madeira”, um aglomerado de barracas erguido na zona do antigo mercado da freguesia.
Tornou-se, então, necessário criar melhores condições de habitabilidade para os operários, com a construção de um complexo residencial nas imediações da fábrica.
“A implementação [do bairro] não resultou de um mero acumular de edifícios, mas sim de uma forma ponderada e pensada de organização do espaço”, lê-se no trabalho de Tiago Clérigo, onde é destacado o papel de Rocha e Mello na concepção do complexo, com planos que ditaram as regras de construção e de expansão do espaço fabril e do bairro.
“O planeamento foi tal, que ainda hoje se fazem investimentos com base naquilo que se planeou há 100 anos”, nota Nuno Maia, director de Relações Institucionais e Sustentabilidade da Secil.
As casas, servidas com electricidade, água e, um pouco mais tarde, esgotos, começaram por ser atribuídas aos funcionários “imprescindíveis” ao funcionamento da fábrica, onde se incluíam as chefias e pessoal técnico como electricistas e serralheiros. Era este o caso do pai de Manuel Leitão, que desde cedo teve direito a casa.
“Às vezes, vinham chamá-lo às quatro ou cinco da manhã. Convinha que estivesse perto da fábrica”, explica o morador, que começou a trabalhar aos 12 anos no serviço de fornecimento aos sócios da cantina do bairro, onde tinha a incumbência de “tomar conta” das cadernetas.
“Anotávam-se os consumos que geralmente eram pagos no final do mês”, recorda, referindo que o espaço evoluiu para uma cooperativa, onde se vendia “de tudo”, desde mercearia, tecidos, sapatos e até “capacetes para a indústria”.
“Era o Continente da altura. Embora fosse apenas para sócios, ou seja, para os trabalhadores da fábrica, vinham pessoas da Batalha ou da Marinha Grande que usavam os cartões de associados. Dava-nos jeito, porque havia bónus de consumo.”
Filho de um operário sem direito a residência no bairro, Agostinho Pedroso também enaltece as “maravilhas” da caderneta, que permitia às famílias abastecerem-se mesmo quando não tinham dinheiro.
“Raramente alguém deixava de ter comida na mesa por falta de dinheiro. As contas iam crescendo e pagava-se à medida que se podia”, conta o professor, que embora nunca tivesse vivido no bairro, usufruía das “regalias” que este oferecia, como os balneários. “Vivíamos na aldeia da Venda. Ao sábado, íamos de bicicleta para tomar banho ao bairro.”
Outro dos “privilégios” destacados por Agostinho Pedroso era a escola e a “qualidade” do ensino e dos docentes, contratados e pagos pela empresa, tal como acontecia com os dois médicos, enfermeiro e pessoal auxiliar do posto médico, com a parteira, com o padre e com o sacristão.
“Tivemos professores muito bons, que não se limitavam a ensinar a matéria. Por exemplo, eram eles que acautelavam que lavávamos os dentes bem a seguir ao almoço, que nos era fornecido na cantina, assim como o lanche”, recorda.
As crianças tinham também “professor de ginástica” que “tinha de ter conhecimento de educação física e de vários desportos desde futebol, voleibol, basquetebol, hóquei em patins, pingue-pingue ou andebol”, realça Joaquim Antunes, filho de um antigo funcionário da fábrica, que viveu no bairro até aos 20 anos, e que realça outro “luxo” afecto aos funcionários da empresa: a colónia de férias em São Martinho do Porto.
Matinés e festas “memoráveis”
Memoráveis eram também as matinés de cinema, as festas e os bailes na Casa de Pessoal, onde chegou a haver teatro, orquestra e rancho folclórico, actividades que, tal como acontecia com todas as valências do bairro, com excepção da capela, apenas podiam ser frequentadas pelos funcionários da fábrica ou familiares directos.
Segundo Manuel Leitão, às vezes, “se apanhavam um vigilante mais bem-disposto”, havia excepções, mas com “muita regra”.
“Quem vinha de fora a um bailarico, tinha de ser apresentado por um sócio e assinar um termo de responsabilidade em como se ia portar bem. E só se podia entrar com gravata”, explicita o morador, referindo que, após o 25 de Abril, a Casa de Pessoal passou a aceitar como sócios pessoas que não estivessem ligadas à empresa e a abrir as suas actividades à comunidade, o que aconteceu com outros espaços do bairro, como as piscinas ou equipamentos desportivos.
Mário Lopes, presidente da direcção da Casa de Pessoal, assegura que a instituição tem “uma política de abertura à comunidade”, mas reconhece que, também por força da pandemia, a sua actividade está “reduzida”. “
Em termos desportivos só temos a secção de ténis de mesa federada. Estamos a trabalhar no projecto da requalificação das piscinas”, adianta.
O declínio da Casa de Pessoal acompanhou também o processo de despovoamento do bairro, que se acentuou em meados dos anos 80 e na década de 90, por várias razões.
“A vida dos funcionários começou a melhorar e estes preferiam construir as suas próprias casas”, alega Manuel Leitão. Nuno Maia acrescenta mais dois factores. Por um lado, a redução do número de trabalhadores – chegaram a ser “mais de mil” e agora são “menos de 200” - e, por outro, as próprias condições das habitações. “Uma casa magnífica nos anos 30 do século XX não é uma boa casa nos dias de hoje”.
Natural de Alijó, Maria Helena, vive no bairro há 40 anos. Não se queixa das condições da moradia, mas diz ter saudades do tempo em que o bairro era “uma animação”, com as ruas “cheias de crianças” e com as muitas actividades ao dispor dos moradores.
“Tínhamos aqui tudo para nos servirmos e para nos divertirmos. Não precisávamos de sair para nada”, conta a mulher, viúva de um antigo vigilante de máquinas da fábrica de cimentos, garantido, no entanto, que o espírito de comunidade se mantém, apesar de o bairro estar quase vazio.
“Somos uma família”, afiança, sem esconder o lamento de ver “tanta casa vazia”, num tempo em que há tanta gente a precisar de casa.
Confrontada sobre o futuro do bairro, a Secil, pelo voz do seu director de Relações Institucionais e Sustentabilidade, Nuno Maia, informa apenas que “estão a ser equacionadas todas as possibilidades”.