Sociedade

"A cura para o cancro não está ao virar da esquina”

2 abr 2009 00:00

João Lobo Antunes, neurocirurgião, é um homem de convicções e defende o Serviço Nacional da Saúde como um “bem precioso”, que deve manter alianças com o privado. Critica os constantes anúncios de cura para o cancro, que criam falsas esperanças.

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“Temos uma população de ‘preocupados saudáveis’”. Haverá hoje uma preocupação desmedida com a saúde?

Não sei se a preocupação é desmedida. Às vezes, é completamente disparatada. Também é uma preocupação frequentemente gerada pelos próprios meios de informação. Há uns tempos parecia que havia o pânico da semana: eram as linhas de alta tensão, os telemóveis ou os frangos que tinham dioxinas.

A comunicação social está constantemente a criar perigos, uns reais outros imaginários. Depois também há a convicção de que se as coisas forem detectadas a tempo, a doença pode ser atalhada e abortada.

Paralelamente a isto, há a noção de que estão constantemente a aparecer curas para as doenças mais ameaçadoras. Curas para o cancro são quase duas ou três por semana, quando, na maior parte das vezes, são uma perfeita ilusão.

Pode haver incrementos pequeninos, sobretudo nos esclarecimentos de certos mecanismos fundamentais, não só no cancro, como noutras doenças. A cura para o cancro não está ao virar da esquina.

Por outro lado, as pessoas hoje são mais exigentes em relação aos direitos que têm na área da Saúde, o que as leva a serem muito mais utilizadoras e gastadoras desse produto. Tudo isto tem como consequência o aumento da sua procura e, por vezes, nos serviços de urgências, sem que haja razão real para isso, o que entope o sistema.

Finalmente, há a ideia de que podemos regular até o próprio processo da morte, que passa quase a ser uma opção. As pessoas já não aceitam que não sejam prestados todos os cuidados tecnologicamente mais avançados, muitas vezes complexos, arriscados e perigosos.

A Medicina Geral está a ficar sem médicos. Os jovens escolhem especialidades que dão mais prestígio?

Isto é aborrecido dizer, mas a Medicina não é excepção em relação às outras profissões. Os jovens escolhem as especialidades que dão mais rendimento e mais prestígio social. Se repararmos, nos EUA é a mesma coisa.

A Medicina Geral e Familiar está no lugar mais baixo da escala, o que é uma enorme injustiça. Injustiça social e moral. É uma especialidade pela qual tenho o maior respeito, porque é o esqueleto e a alma da profissão médica.

Muitas das pessoas que escolhem a Medicina Geral e Familiar são a imagem da verdadeira vocação de ser médico. É uma especialidade que tem de ser acarinhada, apoiada, remunerada e dignificada no contexto das especialidades médicas e das profissões em geral.

Falta vocação e paixão pela Medicina aos jovens médicos?

As pessoas que querem entrarpara Medicina têm motivações altruístas, mas também é verdade que a Medicina ainda assegura uma certa estabilidade profissional que outras áreas, desde a Gestão, Economia e Psicologia, já não garantem.

Referiu que não faltam médicos, estão é mal distribuídos. O que fazer para inverter esta tendência?

Criar incentivos que os fixem nas zonas mais desprotegidas, mas não são só incentivos financeiros. São também incentivos profissionais, condições de trabalho, proporcionar oportunidades de formação e intercâmbios com centros mais evoluídos, mais apetrechados.

É um conjunto de medidas que não passa exclusivamente por pagar mais. É preciso que o ambiente profissional seja estimulante. E hoje há muitas áreas na periferia do País onde é possível viver agradavelmente, mais do que nos centros urbanos. Com a melhoria dos acessos, hoje não se está muito longe de nada. O Governo tomou medidas que geraram polémica, como encerramento de SAP e de maternidades.

Como avalia o sistema de saúde deste Governo?

O professor Correia de Campos tentou estabelecer alguma ordem no sistema, tendo como critério o apetrechamento técnico, a experiência e a segurança da Medicina que se fazia e também a redução de custos excessivos em algumas áreas no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

O SNS é um bem precioso, é um bem social que não se pode perder. Certamente que o modelo de há 30 anos já não serve. Sou um acérrimo defensor do SNS, mas sou igualmente um convicto defensor da necessidade de alianças com os privados, da racionalização do sistema, da não duplicação e da qualidade técnica do que se faz. Não são medidas isoladas.Fechar uma maternidade ou um hospital será sempre uma medida impopular, em qualquer parte do mundo.

Já é possível a alteração de genes para evitar que uma pessoa venha a sofrer de algumas doenças. Em termos éticos é aceitável?

Com certeza.Tudo o que seja o bom uso da tecnologia tem uma nobreza do ponto de vista da ética que deve ser respeitada.

O cérebro ainda é um grande mistério. É esse o grande desafio?

O cérebro será sempre um desafio enquanto existir humanidade. Quando deixar de existir humanidade deixa de existir cérebro e nós deixamos de nos preocupar com ele.

Há advogados que, em casos de homicídio, defendem a inimputabilidade do arguido, afirmando que cometeu um acto irracional. É possível dizer “não fui eu, o meu cérebro é que mandou”?

Isso é um argumento que se está a tornar cada vez mais frequente, sobretudo desde que se estudou a ressonância magnética funcional, mas o problema da culpa não é um problema médico.

Mas é possível?

É muito difícil. É outra tendência da “medicalização” da vida jurídica. É um escape perigoso que tem de ser muito ponderado. 

“Não podemos eliminar as listas de espera”
 

Faz cerca de 400 operações por ano. Como explica que noutras unidades de saúde não sejam obtidos tão bons resultados?

Estou a contar também com as cirurgias que faço no privado. Muitos dos problemas são organizativos. O cirurgião não vive sozinho, precisa de anestesistas, de técnicos, de enfermeiras, de meios de diagnóstico, etc.

Um serviço hospitalar, sobretudo de uma cirurgia complexa como a cirurgia cardíaca ou a neurocirurgia, é uma máquina que tem de estar bem oleada e tem de ter suporte administrativo. De outra maneira não funciona.

O que fazer para combater as listas de espera nos hospitais?

Não podemos eliminar as listas de espera. Os doentes que entram nos serviços de urgência com patologias, como tumores cerebrais, acabam por entupi-los e fazem com que não possamos dar resposta às cirurgias da coluna, por exemplo, como gostaríamos.

Foi mandatário de Jorge Sampaio e depois de Cavaco Silva. Acredita nas pessoas, e não nos partidos?

Acredito nas pessoas, nas suas convicções, nos seus projectos, no carácter e na sua dedicação ao serviço público. Esteve 13 anos nos EUA. Como vê a eleição de Barack Obama? Vejo como toda a gente, excepto Hugo Chavez: com esperança, com algum entusiasmo, com a expectativa de que algo pode mudar, não só nos EUA como no resto do mundo. Obama aparece como um salvador.

E Portugal também precisa de um salvador?

Em Portugal devemos ser todos salvadores. De outra forma entrase mais uma vez naquele espírito sebastianista à espera que apareça alguém que resolva tudo. O que se espera de nós é o cumprimento quotidiano e bem feito daquilo que é a nossa obrigação. 

“Sou um médico que escreve”


Disse à Rádio Renascença que “não haver maneira de afastar um professor incompetente é trágico”. O que quis dizer com isso?

Um professor ou um médico incompetentes são a mesma coisa. Há um dilema entre a garantia de emprego e o direito legítimo das pessoas ganharem a sua vida, e a necessidade de avaliar competências e reconhecer o mérito. Isso aplica-se a todas as profissões, inclusive a médica.

De todos os que entram na carreira pode haver alguns que eu ache que não têm lugar no meu serviço, ou porque têm menos talento, ou porque trabalham menos ou porque não cumprem com as suas obrigações, etc. Muitas vezes, o sistema absorve essas pessoas, assim como não oferece incentivos para aqueles que cumprem, são mais dedicados ou têm mais qualidade de trabalho.

Lê as obras do seu irmão? Trocam críticas literárias?

Leio muita coisa. Ele é um profissional, eu sou um médico que escreve. As coisas que ele escreve são diferentes daquelas que eu escrevo. Mas não diria a verdade, se não ficasse feliz quando ouço uma palavra de elogio pela qualidade do que escrevo, como ele teve a amabilidade de dizer em relação ao meu último livro. Como ele é um grande escritor da Língua Portuguesa – um dos maiores – gosto de saber que ele aprecia aquilo que eu escrevo.

Recebeu o Prémio Pessoa. Que valor atribui a essa distinção?

O valor deriva do prestígio do prémio, que é medido por dois factores: pelo júri que aprecia e pelas pessoas que já o receberam. Cria-se uma companhia que define, de alguma forma, a excelência do prémio. Nesse aspecto, é das maiores distinções que tive na minha vida académica e profissional.

Percurso
Perdeu-se um engenheiro, ganhou-se um neurocirurgião

Quando era pequeno sonhava ser engenheiro. A tradição familiar trocou-lhe as voltas e João Lobo Antunes formou-se em Medicina. É um dos mais conceituados neurocirurgiões e admite que a influência do pai pesou “inconscientemente” na opção pela carreira clínica.

Irmão de António Lobo Antunes e de Nuno Lobo Antunes, descende de uma família bem sucedida.

Durante 13 anos trabalhou na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, EUA, e, em 1996, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa.

Escrever, ler, ouvir música e estar com a família são os seus passatempos preferidos. “Viver o mundo que construí e no qual me sinto muito feliz”, diz ser o seu rumo. Vai continuar a escrever até “ter alguma coisa para dizer e ter instrumentos, como inteligência e sensibilidade” que permitam fazê-lo. 

Perguntas dos Outros


Carlos Matias, investigador e professor universitário, Pombal Será possível, dentro de poucos anos, criar máquinas tão perfeitas que possam substituir o homem em tarefas cognitivas?

Essa é a aspiração de todos os que se dedicam à investigação da inteligência artificial. Um dos seus pioneiros tem uma frase muito curiosa: “gostaria de criar uma máquina que tivesse orgulho em mim”. Já muito se conseguiu no estado da complexidade dos processos cognitivos, não apenas em tomadas de decisão.

Depois do estado da Deep Blue, provavelmente nunca mais o melhor campeão de xadrez irá vencer a máquina. Até porque a máquina tem uma frieza que elimina do processo de “raciocínio” toda a emoção, fúria e raiva, ingredientes indispensáveis nos processos da vida quotidiana. Reproduzir a complexidade da máquina humana nunca será possível.

Agora, que essas máquinas vieram substituir e, em alguns aspectos, ultrapassar certas capacidades humanas, é indiscutível. O uso que se dá a esse aperfeiçoamento e progresso é que deve ser cuidadosamente ponderado e deve estar ao serviço da humanidade, num sentido muito vasto, e não de interesses que nem sempre são completamente isentos de conflito moral.

Alfredo Sá, neurologista, Leiria

Se fosse ministro da Educação, que medidas proporia para melhorar a capacidade cognitiva e comportamental do cérebro dos portugueses?

Não há uma receita médica. Uma das tentações da sociedade contemporânea é “medicalizar” mais ou menos tudo, e admitir que os problemas poderem ser tratados através de fármacos ou de outro tipo de intervenção.

Introduzir, por exemplo, o Magalhães na Educação como uma espécie de vacina anti-iliteracia não me parece ser a solução. Sobretudo quando se pode correr o risco de eliminar uma das actividades que mais educa o cérebro humano, a leitura.

Como parte integrante de uma estratégia de aprendizagem pode ser um instrumento muito útil. Não é como alguns quiseram fazer crer aos portugueses, uma panaceia que resolve de um momento para o outro o problema da alfabetização dos portugueses.

Há funções que têm sido desprezadas pela pedagogia moderna que vale a pena não esquecer . Uma delas é a memorização. Foi declarada quase um pecado capital por algumas correntes de Educação, o que é absurdo. Há que exercitar o cérebro e pô-lo a trabalhar e não é com soluções fáceis que isso acontece.