Sociedade

Este filme sobre o Polje de Mira/Minde é uma daquelas situações para mais tarde recordar

8 fev 2016 00:00

Em 2014, fomos mergulhar ao Polje de Mira/Minde e o que lá vimos foi transformado num filme que agora recordamos

Jacinto Silva Duro

Caso os níveis de precipitação se mantenham ao actual nível, o Polje de Mira/Minde, no Parque Natural Serras de Aire e Candeeiros, não mostrará, por mais um ano, a explosão de vida que proporciona, quando se transforma num grande lago.

É um dos 30 locais em Portugal classificados pela Convenção Internacional das Zonas Húmidas como um Sitio RAMSAR.

O Polje é uma importante depressão cársica plana, associada a um sistema hidrológico subterrâneo de nascentes e grutas.

Este verdadeiro mar, onde nem sequer faltam as ondas, designado localmente por "Mata", aparece apenas no período de Inverno e em anos de grande actividade hidrológica.

Mas nas ocasiões em que se mostra, o cenário do grande lençol de água que se estende entre as duas vilas é de grande serenidade lacustre. Nos dias de calmaria, na água azul brilhante, podemos ver reflectidas as traseiras das alvas casas de Mira e de Minde e nos de maior vento, a agitação resulta em ondas que vão morrer com estrondo em quintais e jardins. Dir-se-ia que estamos à beira do Atlântico.

“Sob os ventos que sopram do mar, a vasta toalha de águas é agitada: as ondas propagam-se e vêm rebentar junto das margens”, escreveu, em 1949, o investigador da Universidade de Coimbra, Alfredo Fernandes Martins, no livro Maciço Calcário Estremenho, contribuição para um estudo de geografia física.

“Em 2001, as ondas batiam forte nas paredes de trás da minha casa. No piso de baixo, tinha metro e meio de água”, recordou um dos moradores de Minde ao JORNAL DE LEIRIA, em 2014, ano em que o mar se deixou ver pela última vez.

Numa pausa da sementeira das batatas, levantou a mão até ao meio de uma parede para mostrar onde chegou a cheia de há 15 anos que, supostamente, foi a maior desde 1936.

Com 77 anos e “uns trocos”, já não se lembrava de todos os Invernos em que a água subiu, mas foram muitas vezes. Disso tinha a certeza.

“Só quando chove durante muito tempo é que a lagoa se forma e também não fica cheia durante muito tempo. Em pouco mais de uma semana, se não chover, desaparece”, explicou.

As exsurgências, nascentes de um curso de água que corresponde ao aparecimento ao ar livre de águas subterrâneas, trazem o “mar” ao polje e os sumidouros levam-no, através da intrincada rede de grutas, algares e canais subterrâneos do Maciço Calcário Estremenho que precipitam as águas nos rios Alviela e Almonda e noutros afluentes.

Segundo a Sociedade Portuguesa de Espeleologia, a cheia na Mata é alimentada por quatro nascentes: Regatinho, Contenda, Poio e Olho de Mira.

O que é um polje?
Polje é a palavra de origem eslava usada para identificar vastas depressões fechadas de fundo chato, encontradas nas regiões de relevo cársico. Estas formações, semelhantes a vales, podem permanecer secas, ser atravessadas por um curso de água ou inundadas de forma permanente ou temporária.

O polje de Mira-Minde é uma depressão que separa os planaltos de Santo António e São Mamede, tem uma extensão de quatro quilómetros de comprimento por 1,8 de largura e resultou da movimentação de blocos calcários nas falhas no terreno.

Na época de chuvas intensas, com a subida do nível freático os poljes, como o de Mira-Minde, são alimentados por exsurgências, que podem funcionar como sumidouros, descarregando milhares de hectómetros cúbicos de água na bacia do Tejo.

“Se imaginarmos que as Serras de Aire e Candeeiros são uma esponja de banho e que o polje de Mira-Minde é uma depressão no meio, conseguimos visualizar que, nesta altura, em que a 'esponja' está saturada, a água vai aparecer na tal depressão”, explica José Artur Pinto, membro do Núcleo de Espeleologia de Leiria (NEL) que, em 2014, mergulhou neste mar provisório.

O polje de Mira-Minde e as nascentes associadas (Alviela, Almonda e Olho da Maria Paula) foram classificados em Dezembro de 2005 como sítio Ramsar,- zona húmida de importância internacional. Faz parte do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC).

Mergulhos, canoagem e espécies únicas
Há muitos anos que José Artur, elemento do Núcleo de Espeleologia de Leiria (NEL), se habituou a tratar por tu o polje.

No Verão e Primavera, desce às suas grutas e algares (grutas com poço vertical). Desde 2001 que, no Inverno, quando a Mata se enche, veste o fato de neoprene para mergulhar nas águas verde-turquesa.

No mês de Março de há dois anos, em conjunto com Alexandre Guerra, também do NEL, subiu a serra para um passeio subaquático, no meio das fragas. “É um mergulho engraçado.

No fundo, vêem-se as ervas e as árvores a balouçar, como se fossem algas. Nadamos por cima dos caminhos e muros de pedra [chousos], mas o que provoca algum receio é nadar por cima dos poços. Para o fazer é preciso quebrar um certo bloqueio mental”, conta e adianta: “é uma forma de conhecer a Mata, tal como o faço nos percursos pedestre, a correr e a fazer BTT. É engraçado passar debaixo de água em sítios que já pisei. Parece que estou sonhar. A água tem uma visibilidade muito boa, límpida e calma, coisa que é difícil encontrar no mar da nossa costa. É um cenário incrível!”

Tomando as devidas precauções, é possível descer até ao máximo de 15 metros de profundidade e, depois, entrar dentro de um poço e continuar a descer no meio de estreitas paredes.

“A água está carregada de larvas de imensos animais e há muitas galinhas-de-água por todo o lado”, adianta o espeleólogo.

A existência de muitas larvas na água é para o naturalista autodidacta Samuel da Costa um sinal de que o polje é um local de extrema importância para a reprodução de diversas espécies de anfíbios.

Nas frias águas, encontram-se facilmente exemplares de tritão, sapo comum, sapinho-de-verrugas-verdes, salamandra-de-fogo ou salamandra-de-costelas-salientes ou, se preferirmos, em latim: Bufo bufo, Pelodytes punctatus, Salamandra gallaica e Pleurodeles walt..

Muitas destas espécies estão ameaçadas noutros pontos do País pela poluição e pela introdução de espécies exóticas, como o lagostim do Luisiana que, sem predadores naturais, tem destruído muitos eco-sistemas e ameaçado muitas espécies de anfíbios.

“O polje de Mira-Minde é também um ponto importante para aves aquáticas que aproveitam a explosão de vida para se alimentarem. Basicamente, torna-se um hotspot de comida e de bicharada. Outro animal que aproveita o festim são as Natrix maura, cobras-de-água comuns (cobras de água viperinas)”, diz Samuel da Costa, adiantando que as larvas não são todas de insectos.

Algumas são mesmo de animais que julgaríamos mais comuns no mar: camarões. “Com a subida da água, aparecem também Chirocephalus sp., isto é, camarões-fada que servem de alimento aos anfíbios.

Quando o polje seca, entram em diapausa. Os ovos entram em estado de dormência e eclodem, quando o polje volta a encher. Nas margens e dentro da Mata, encontram- se também espécies vegetais que vão sendo cada vez mais raras, como os quercus, o azevinho e flores raras como as 25 espécies diferentes de orquídeas que o parque protege.

Ali perto, o Centro Ciência Viva do Alviela – Carsoscópio, situado junto à praia fluvial dos Olhos d'Água do Alviela, em Louriceira, no concelho de Alcanena, mostra ao pormenor como se faz o enchimento e descarga do polje. Mostra também as espécies de fauna e flora cuja existência está intimamente ligada à subida e descida das águas da Mata.

Arca de Noé
Animais à solta por todo o lado

Há pastores que se queixam que a subida das águas lhes rouba o pasto para os animais mas, quando elas baixam, grande parte da terra que esteve submersa produz o melhor pasto do vale para os rebanhos e gado vacum.

A flora é constituída por matos rasteiros, cardos e alecrins, narcisos, orquídeas e jacintos-dos-campos e também oliveiras, azinheiras, e carvalhos.

Além dos anfíbios, também guarda-rios, patos bravos e galeirões aproveitam as águas calmas para se alimentarem e retemperarem forças.

“Muitos deste animais, normalmente estão confinados a charcos ou poços. Espaços muito reduzidos. Aqui podemos vê-los num cenário lindíssimo e em grande escala. Há larvas de insectos por todo o lado, que vão servir de alimento aos girinos das rãs e, entretanto, começam a aparecer as gaivotas para se alimentarem deles. É uma cadeia alimentar curiosa”, conta José Artur Pinto.