Sociedade

Filhos de um Deus menor

10 mar 2016 00:00

Quando quer dar roupas e calçado que já não usa, por certo interroga-se sobre qual será a melhor forma de garantir que chegam a quem realmente precisa

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O JORNAL DE LEIRIA dá-lhe a conhecer o trabalho de três instituições, localizadas em Leiria, Marinha Grande e Pombal, que apoiam cerca de mil famílias carenciadas, bem como histórias de vida de pessoas que sobrevivem também graças à sua generosidade.

O cheiro característico da salamandra transporta-nos por instantes até casa dos avós, enquanto aquece os corpos e as almas do pequeno grupo que assiste a um filme, confortavelmente instalado em sofás.

Ali encontram um refúgio do frio e da chuva, duche quente, roupas lavadas e duas refeições por dia. Em comum têm percursos de vida dramáticos e uma equipa de técnicos que os apoia sem fazer julgamentos. O Porta Azul, na Marinha Grande, há muito que deixou de ser apenas um Centro de Apoio Sócio-Sanitário.

A funcionar na Marinha Grande há dez anos, foi criado para dar apoio a toxicodependentes, trabalhadores do sexo e sem-abrigo. E embora continue a trocar seringas, distribuir preservativos, fazer o rastreio de doenças infecto-contagiosas e a lavar roupa, hoje proporciona outros apoios e a outras pessoas. Ali não se recusa ajuda a ninguém.

Carlo Melo, 40 anos, presidente da Associação Novo Olhar II e coordenador do Porta Azul, revela que, hoje, a situação mais preocupante tem a ver com casos de pobreza quase extrema.

Pessoas como A., 52 anos, que não aufere qualquer tipo de rendimento, ou de R., 57 anos, que quando trabalha o mês inteiro recebe 80 euros de salário. A. dorme numa carrinha abandonada e R. no anexo de uma casa, pelo qual vai pagando valores simbólicos.

“Esta é a última linha que eles têm para não cair na pobreza extrema”, assegura Carlo Melo, em alusão a estes dois casos e a tantos outros que por ali passam, com problemas de alcoolismo, HIV ou imigrantes que procuram em Portugal uma vida melhor e acabam por ir bater ao Porta Azul quando constatam que vieram engrossar as estatísticas do desemprego. No último mês, apoiaram com regularidade 80 pessoas, entre os quais nómadas romenos.

Respeito e gratidão

Depois, há os cerca de 25 que frequentam o espaço todos os dias, para almoçar e lanchar, fugir do mau tempo, tomar duche, lavar roupa, ver televisão ou participar em actividades ocupacionais. Em troca, colaboram em pequenas tarefas, como limpar a cozinha ou ajudar a transportar coisas, sob o comando de Carlo Melo, o único técnico do sexo masculino que ali trabalha a tempo inteiro e com o qual têm uma relação de respeito e de gratidão.

“Desculpa interromper Carlo, mas esta gilete já não corta”, explica um dos utentes, enquanto aponta para a lâmina. “É por teres a barba rija”, responde o coordenador do Porta Azul, com um sorriso nos lábios, enquanto pede a outra técnica para lhe satisfazer o pedido. “Carlo, vou tomar banho”, informa outra utente. Tudo parece gravitar em torno do assistente social alto e robusto, de cabelo puxado para trás com gel, fã de tatuagens e peças vintage, que restaura com os utentes do espaço.

A impressão com que se fica é que as regras estabelecidas são respeitadas e que o grupo de pessoas que ali passa o dia pertence a uma família, muito heterogénea, é certo. Ao ponto de um dos utentes, alcoólico, confiar o Rendimento Social de Inserção (RSI) ao coordenador do Porta Azul para ele o gerir. “Veio da Índia à procura de uma vida melhor, mas não se integrou. Dorme numa casa abandonada com mais seis sem-abrigo”, conta. “Ele sabe que se tiver os 200 euros com ele gasta-os.”

Com um trato fácil e acessível, Carlo Melo não esconde, contudo, que já foi obrigado a “encher o peito” algumas vezes para pôr utentes em sentido e que, por vezes, tem de os convidar a sair. Ou porque estão a ressacar com falta de droga ou de álcool ou porque já beberam de mais e começam a entrar em conflito com os outros. “Eu sou um facilitador. Tanto lhes dou um abraço como os mando sair.”

Quando a situação parece perder o controlo, R. tem por hábito intervir, não só por ser impulsiva como porque não aceita faltas de respeito para com os técnicos que estão sempre disponíveis para ajudar. A “matriarca” do Porta Azul também considera ter legitimidade para tal por ser das utentes mais antigas do espaço, que sente como se fosse seu.

No dia 4 de Março, fez 57 anos. Houve um lanche especial, com direito a bolo de aniversário, e recebeu uma camisola nova, oferecida por uma das meninas da escola onde ajuda a dar os almoços, que se afeiçoou por ela. “Gosto muito do que faço,” diz, com os olhos a brilhar.

Vidas destroçadas

A vida de R. tem sido tudo menos fácil. Casou com um homem que “bebia”, de quem teve dois filhos. A mais velha foi entregue aos avós maternos com 17 meses, “porque o marido tinha três filhos de outra mulher” e não queria que ela trabalhasse. Quando a filha andava na “pré”, detectou- se que sofria “dos nervos”.

Aos 8 anos, regressou a casa dos pais e passou a frequentar uma instituição de apoio a deficientes, onde R. diz que a filha foi abusada. “A Justiça, em Portugal, está por conta dos ladrões e dos criminosos. Quando alguém faz mal, são todos doentes mentais”, ironiza. “Eu sabia como fazer Justiça”, observa, transtornada. Mas esta história não ficou por aqui.

“Quando ela tinha 16 anos descobri a verdade toda”, afirma R., visivelmente incomodada. O marido, de quem se separou de imediato, também molestava a filha. E o ciclo de abusos perpetuou-se já que, um ano depois, se juntou e engravidou de um homem que a tratava mal. “Cheira-me que, enquanto houve dinheiro da Segurança Social, tudo bem. Quando deixou de haver…”

Aos 23 anos, a filha acabou por ser internada numa instituição. A neta ficou a morar com um tio paterno e, depois, com a avó paterna. Hoje, vive numa instituição em Castanheira de Pera. Tem 10 anos. R. não vê os filhos nem a neta há vários anos, mas procura ir sabendo como estão. “Ainda hoje estão sempre no meu pensamento.”

Limpezas pagas com sopa
Ao longo da sua vida, R. teve sempre trabalhos precários. Ao ponto de a limpeza de uma casa, uma vez por semana, ser paga com pratos de sopa. “Já passei fome e já passei frio”, conta. Chegou a receber o RSI e o seu último trabalho a tempo inteiro foi num restaurante, na Nazaré, onde partiu a clavícula.

Hoje, R. trabalha apenas uma hora por dia a servir almoços numa escola, em troca de 80 euros por mês. Aos 57 anos, tem a antiga 4.ª classe e a frequência de seis cursos de formação, que diz não lhe terem servido de nada, apesar de guardar todos os certificados, orgulhosamente. As suas expectativas em relação ao futuro, passam por voltar a receber RSI.

O processo para que possa voltar a usufruir deste apoio do Estado está a ser tratado pelos técnicos do Porta Azul, por quem tem um carinho especial. “Todos eles são espectaculares. Quando olham para mim, sabem logo como estou. Já me conhecem”, afirma, satisfeita.

“Aqui puxam as pessoas para cima. Fazem com que não pense tanto na vida”, acrescenta. “No fundo, somos uma família.” A., 52 anos, também tem expectativas que o RSI o ajude a recompor a vida. Tal como no caso de R., foram os técnicos do Porta Azul que lhe preparam o processo de candidatura. “Já fui a várias empresas procurar emprego. Dizem-me que sou velho para trabalhar, mas sou novo para me reformar.”

Sem auferir qualquer rendimento, A. sobrevive graças ao apoio do Porta Azul, que presta apoio especializado e lhe garante um duche de água quente diário, dos restaurantes que oferecem as refeições que sobram do dia anterior e das padarias que fornecem o pão para o lanche. As roupas e o calçado que usa são doados pela população da Marinha Grande, tanto na loja social como no Porta Azul. Todas estas valências são geridas pela Associação Novo Olhar II.

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