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Já ouviu falar nos “pimbas” da música “clássica”?

15 mai 2016 00:00

Já ouviu falar na “música pimba” celebrizada por Emanuel, é certo.

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Jacinto Silva Duro

Mas, e se lhe dissermos que, dentro da chamada música “clássica” ou erudita, também existem compositores que, com as devidas distâncias e muitas aspas, também são considerados, pelos seus pares, como músicos “pimba”?

Sim, é verdade. Na lista onde aparecem Emanuel, Romana ou Quim Barreiros, há quem se atreva a juntar Mozart, Vivaldi, Philip Glass e Michael Nyman, entre outros.

Obviamente, esta polémica é subterrânea, pouco visível para o público, mas comum no seio dos compositores. Só assim se percebe a contenda que coloca Michael Nyman, Philip Glass e até Vivialdi no lote dos artistas “pimba”…

O termo deve ser ingerido com cautelas e muitas aspas, uma vez que não é possível transpor directamente conceitos como “música pimba” para a linguagem clássica. É possível, contudo, transpor conceitos como “música de massas” ou com objectivos de agradar a largas franjas do público, características que também estão na génese da “música pimba”.

“Quando penso no termo ‘agradar às massas’, penso na infeliz mas real necessidade que muitos dos intervenientes na indústria da música têm em garantir que continuarão a trabalhar numa área de difícil sustento, o que pressupõe o consumo de músicas que entrem facilmente no ouvido e que nos prendam a atenção, assim que as escutamos pela primeira vez”, considera o músico André Barros.

Assim, o pianista da Marinha Grande adianta que “a inviolabilidade qualitativa, fruto de séculos de mestria, da música clássica não se compadece agradar às massas”.

Não obstante, afirma que há compositores contemporâneos que procuram apelar a um universo de ouvintes mais amplo possível “sem subverter a beleza da composição e da interpretação... conseguindo aproximar um público que se deixa entusiasmar por melodias e estruturas menos evidentes ou expectáveis, e instrumentações de pendor clássico ou por uma conjugação destas com o universo da electrónica”. 

“Beethoven era um radical comparado com Mozart!” Mas voltemos a Vivaldi. Um dos mais conhecidos compositores do barroco, foi considerado durante séculos como um criador ‘banal’. “E muito mau, comparado com os da sua época. Stravinsky afirmou mes
mo: ‘Vivaldi não escreveu 450 concertos grossos.

Escreveu 450 vezes o mesmo concerto!’ Ora as famosas Quatros Estaçõessão concertos com orquestra, com dois, três ou quatro solistas mas, para um compositor clássico, com uma perspectiva de escrita mais elaborada, ele fazia sempre a mesma coisa, pois o princípio criativo era sempre o mesmo”, sublinha Paulo Lameiro.

O maestro de Leiria lança mão a outro nome que, dificilmente, nos lembraríamos de considerar como autor de “música padrão”: Mozart, que pertenceu, com Haydn e Beethoven, na segunda metade do século XVIII, à Primeira Escola de Viena. “Não inventou nada. Apenas criou a forma genial como escrevia…

Já Beethoven fez coisas novas. Beethoven era um radical comparado com Mozart!” Lameiro usa este exemplo para reflectir a dicotomia que, ao longo de séculos, opôs criadores cujo objectivo da sua obra é bem dispor e entreter o ouvinte e aqueles que pretendem interpelar e interrogar o ouvinte.

No século XX, a discussão, velha de séculos, recebeu novo fôlego por volta dos anos 1950. À época a música produzida era rebuscada pois os compositores queriam responder à chamada música romântica do século XIX, essa sim, muito popular.

“Para eles, essa música era pobre e muito superficial. Assim, criaram linguagens mais profundas, com uma linguagem mais conceptual e elaborada. Ora, por oposição a essa corrente europeia, especialmente germânica, associada ao pensamento, à filosofia e à psicanálise, apareceu outra, norte-americana, com um nome de charneira: John Cage, autor da composição musical4'33", que é uma obra de silêncio total.

Para compositores que demoravam meses para escrever cinco minutos de música, um norte-americano dizer que 4'33"era uma obra musical, soou a ofensa”, conta Paulo Lameiro. Contudo, a “ousadia” de Cage levou ao aparecimento do indeterminismo, por oposição ao expressionismo. A partir daí o resultado é… “indeterminável”. 

Pouco reconhecimento
Vivaldi de bolso

Por que razão, no final do século XX e início do século XXI, a generalidade das pessoas não consegue identificar talentos geniais na composição, comparáveis a Mozart ou Tchaikovsky? Deixou de haver qualidade? A composição banalizou-se? “Há criadores com um nível de qualidade similar à que Mozart teria no seu tempo, mas a quantidade de informação e de criadores actual é infinitamente superior à do tempo do compositor austríaco.

Hoje, há milhões de criadores. Só em Leiria, há mais compositores do que em todo o Portugal do século XIX. No mundo, todos os dias, há estreias de obras extraordinárias mas o consumidor médio tem referências culturais mais pobres”, responde o maestro Paulo Lameiro.

A cultura geral, a autonomia e os critérios de pensamento crítico de selecção, adianta, há duas décadas era superior à actual. Hoje, há tanta informação disponível que não temos tempo de olhar para toda ela e pensar.

Nos telefones inteligentes que temos no bolso é possível instalar aplicações grátis que permitem fazer música semelhante à de Vivaldi.

Segundo o maestro, em conclusão: continua a haver, num circuito muito restrito, compositores geniais como havia no tempo do Mozart, “mas o seu trabalho é submergido e perdido em infinitas papeleiras com muito lixo, de indústrias culturais confundidas com cultura e indústrias musicas confundidas com música”.

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