Desporto

João Lameiras: “Ninguém está preparado para lidar com a clausura, mas não verifico desmotivação”

10 abr 2020 19:34

O psicólogo da Federação Portuguesa de Atletismo, natural de Pombal, explica como estão os atletas a viver este momento de incerteza e como os ajuda na adaptação ao novo dia-a-dia.

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João Lameiras
Ricardo Graça

Com a pandemia houve mais atletas a procurá-lo?

Isso ainda não se verifica. Face à crise que estamos a viver, podem surgir emoções de difícil gestão, sendo que a incerteza face à situação pode gerar respostas de ansiedade e stress. Os atletas são pessoas especialmente capacitadas para fazer face a situações de elevada exigência, tal como aquela em que todos vivemos. Quando foi declarado o Estado de Emergência, na Federação Portuguesa de Atletismo procurámos desenvolver um plano de apoio aos atletas e treinadores que visa garantir que, dentro das condicionantes em vigor e tendo como prioridade proteger a saúde física e mental de todos, cada um faça o seu trabalho e mantenha a normalidade possível. A chave é ajudar os atletas a gerirem adaptativamente as suas emoções e comportamentos neste momento delicado de pandemia, promovendo e fomentando comportamentos de prevenção e saúde que devem ser adoptados em situação de quarentena.

Esta é a altura em que o psicólogo do desporto se torna um bocadinho mais em psicólogo clínico?

Sem dúvida que estamos perante uma situação cujo impacto emocional pode ser avassalador. Neste sentido, o psicólogo do desporto, numa primeira linha de acção, deve ter competências para identificar possíveis respostas desadaptativas e ajudar as pessoas a procurar ajuda adicional. Aqueles que experimentam nervosismo dominador, tristeza persistente ou outras reações prolongadas que afectam negativamente o desempenho no trabalho ou o relacionamento interpessoal, devem ser encaminhados para um psicólogo com especialização clínica.

Os atletas procuram respostas para quê?

O que acontecerá com a nossa vida daqui em diante é a dúvida que se levanta nos diferentes quadrantes da nossa sociedade face à situação de emergência causada pela Covid-19. Estamos todos numa situação de incerteza, qualquer que seja o nosso trabalho, e o desporto não é excepção. Algumas situações vão sendo esclarecidas, nomeadamente, o adiamento dos Jogos Olímpicos, mas esta conjuntura actual levanta outras dúvidas na cabeça dos diferentes intervenientes do mundo do desporto e, em particular, nos atletas. As dúvidas mais frequentes prendem-se com a organização do dia, como gerir os impactos emocionais desta situação e sobretudo, perante as restrições, como optimizar o treino nas suas diferentes dimensões: física, técnica e mental.

Estão desmotivados por terem de treinar em casa, sem as condições ideais?

A verdade é que ninguém está, naturalmente, preparado para lidar com a aceitação desta clausura, mas não verifico desmotivação. Na realidade, o contexto desportivo sempre colocou os seus intervenientes fora da sua zona de conforto, onde permanentemente se adaptaram, desenvolveram e optimizaram. No presente, o que podemos efectivamente controlar é a nossa atitude e comportamento. Não será certamente nas mesmas condições, mas se os atletas adaptarem o comportamento e tudo aquilo que controlam, podem continuar a treinar e assim manter a forma física e mental. Importa não antecipar e viver o momento, organizar o tempo para que possam continuar a trabalhar. Neste sentido, devem ajustar a sua rotina e adoptar algumas estratégias de treino e de auto-regulação que potenciem a resposta adaptativa à situação actual, nomeadamente manter a prática de actividade física mediante os planos de treino prescritos pelo treinador, fomentar o contacto com treinadores e colegas de equipa, incorporar na rotina diária o treino de competências psicológicas ou reflectir sobre a performance passada e formular ou reformular objectivos. Definir objectivos diários pode ajudar o atleta a manter-se motivado e focado na adesão ao seu plano de preparação na situação actual.

Do ténis à realização plena no atletismo, passando pelo futebol jovem do Benfica

Pós-graduado em Psicologia do Desporto e da Actividade Física pela ISPA e Doutor em Neurociências pela Universidade das Ilhas Baleares, João Lameiras está a concluir o Pós-Doutoramento em Motricidade Humana, na área da Psicologia do Exercício e Saúde, na Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa. Possui a Especialidade de Psicologia do Trabalho e Organizações e ainda a Especialidade Avançada em Psicologia do Desporto. De 2009 a 2014 desenvolveu a sua actividade profissional como psicólogo nos escalões de futebol de formação do Benfica. Desde Setembro de 2014 coordena o Gabinete de Psicologia e da Performance da Federação Portuguesa de Atletismo, cuja função principal é a intervenção psicológica e preparação mental dos atletas integrados na Preparação Olímpica. Desde 2015 integra o Grupo de Trabalho em Psicologia do Desporto da Ordem dos Psicólogos Portugueses, sendo atualmente sub-coordenador do Grupo de Actuação em Psicologia & Performance. Lecciona como Professor Convidado no ISPA a disciplina de Psicologia do Desporto e da Performance, no âmbito do Mestrado Integrado e na Pós-graduação em Psicologia do Desporto e da Actividade Física. Natural de Pombal, foi presidente do Clube de Ténis de Pombal, modalidade que praticou desde os 9 anos.

E o treinador?

É a figura-chave na vida desportiva dos atletas. A sua capacidade enquanto líder do processo é muitas vezes decisiva no desempenho dos atletas em competição e seguramente que o será também neste desafio que todos enfrentamos, potenciando, através da sua intervenção, a estabilidade emocional dos atletas.

Mesmo não estando desmotivados é possível aos atletas continuarem a treinar com qualidade sem ter objectivos definidos?

A definição de objectivos é a condicionante principal da motivação dos atletas. Mesmo sem competição no horizonte, reflectir e recordar a razão para treinar e competir pode ajudar os atletas a permanecerem positivos e motivados enquanto se adaptam às restrições actuais. Aqui saliento, uma vez mais, a importância do treinador como líder do processo. É importante que procure compreender os seus atletas individualmente, identificar as suas necessidades e fornecer orientação adequada ao impacto que estão a sentir. Desde modo, e através da sua intervenção, pode potenciar uma resposta adaptativa das emoções e comportamentos dos seus atletas, nomeadamente no que concerne à adesão e qualidade do treino neste momento delicado de pandemia. Focar os atletas na capacidade para lidarem com a incerteza, na superação diária, na aptidão para se adaptarem e aproveitarem estes momentos para surgirem ainda mais fortes, é o desafio de todos os que com eles trabalhamos.

Muitos daqueles com quem trabalha iam aos Jogos Olímpicos. Como encaram o adiamento para 2021?

A notícia veio, seguramente, conferir alguma tranquilidade e reduzir os níveis de ansiedade dos atletas, mas faltam ainda algumas respostas relativamente às restantes competições, respostas essas fundamentais para que estas mudanças não sejam elas próprias fontes de ansiedade.

Foram anos de esforço e dedicação. Abdicaram de estudos e tempo com a família. E agora?

Podemos compreender melhor a resposta emocional dos atletas através do modelo dos estágios de luto de Elizabeth Kubler-Ross: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Duvido que algum atleta negue o que está a acontecer, encontrando-se provavelmente num dos outros estágios. Idealmente, com o tempo, os atletas chegarão ao estágio de aceitação, mas este é um processo altamente individual, com timings próprios. De facto, os atletas podem eventualmente olhar para trás e sentirem-se despojados do seu sonho, ou que o seu esforço foi em vão. Mas não foi, de todo. A dedicação ao treino, a constante necessidade de superação e a perseverança perante inúmeros desafios que tiveram de superar torna os atletas mais preparados para lidarem com estas situações. Sair do foco desportivo e voltar à vida real, estar com a família e fazer coisas que até então não podiam é um aspecto a ter em conta, nomeadamente no que concerne ao reforço de laços relacionais familiares. Importa mobilizar o esforço para o presente, no dia-a-dia, para que os atletas – e todos nós - consigam criar condições para que no futuro estejam mais capacitados para os novos desafios pós-quarentena.

Aqueles que estão agora em forma temem não ter uma oportunidade no próximo ano?

Para os atletas que ainda não estão qualificados este adiamento é uma janela de oportunidade. Os que estão hoje em forma, qualificados ou não, devem continuar a optimizar a sua preparação dentro das condições possíveis sendo que, mais tarde, e se este período for bem aproveitado, todos terão oportunidade de demonstrar competência.

Há quem veja o lado positivo de tudo isto?

De facto, às vezes é necessário fazer um esforço consciente para encontrar o lado positivo de uma situação, especialmente com a configuração da presente. A conjuntura de crise gerada pelo surto de Covid-19 não está nas nossas mãos, mas sim a forma como a enfrentamos tudo o que estamos a viver. Podemos olhar para a situação como uma ameaça ou como uma oportunidade e os atletas estão particularmente treinados para encontrar soluções e enfrentar a adversidade. Fruto do plano competitivo sobrecarregado e da necessidade de conjugar as diferentes exigências a que têm que dar resposta, existe sempre algo que passa para segundo plano. Esta pode ser uma oportunidade para optimizarem alguns processos de treino, investirem no fortalecimento de laços relacionais com as suas pessoas significativas de vida ou direccionarem o tempo recém-encontrado para descansar, recuperar e envolverem-se noutros interesses.

Um dos papéis do psicólogo é reduzir os focos de incerteza. Que ferramentas utiliza numa altura destas em que não há certezas?

Um trabalho de olhar interno e consciente na situação que estamos a viver é um ponto importante para a nossa saúde física, mas não devemos subestimar a atenção e o cuidado em relação à higiene e saúde mental. A estabilidade emocional é mais uma medida de defesa e prevenção. A primeira prioridade do psicólogo deve ser o uso de conhecimento psicológico para informar correctamente sobre o vírus, a fim de evitar ansiedade desnecessária e apoiar as pessoas afectadas, desempenhando um papel facilitador de uma resposta emocional ajustada. Ainda nesta vertente informativa, importa criar alguns documentos orientadores sobre como os atletas se podem auto-regular, emocional e comportamentalmente, e adaptar à presente realidade. De igual modo, durante o período de distanciamento social originado pela quarentena, as consultas online oferecem uma alternativa viável para o atendimento psicológico e terapia, tendo a investigação demonstrado a eficácia desta abordagem, produzindo efeitos semelhantes aos do contexto terapêutico presencial. Por último, à semelhança de outras capacidades, físicas, técnicas e tácticas, as competências psicológicas devem ser treinadas de forma sistemática, consistente e persistente. Em contexto de confinamento, estas competências poderão ser igualmente transferidas para o contexto de treino e competição quando tudo normalizar. Como tal, é de suma importância os atletas incorporarem na sua preparação diária algumas estratégias fundamentais do treino mental. Os atletas que treinam de forma sistematizada estas competências psicoemocionais tendem a lidar de forma mais eficaz e adaptativa com as situações de incerteza.