Desporto

Manuel Nunes: “É importante haver uma atitude reformista no desporto em Portugal”

1 jan 2022 09:27

O presidente da Associação de Futebol de Leiria explica as dificuldades trazidas pelas pandemia e exorta a uma alteração no relacionamento entre Desporto Escolar e o federado

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Manuel Nunes, presidente da Associação de Futebol de Leiria
Ricardo Graça

Qual é a dimensão do problema que a pandemia trouxe ao desporto?

Tem sido pesado para toda a gente com responsabilidade na organização de eventos e de actividades. Meio a brincar, podemos dizer que ninguém acreditaria se alguém dissesse, a meio da época 2019/20, que haveria uma pandemia com estas características, que o Sporting seria campeão e o Benfica ganharia 3-0 ao Barcelona. A verdade é que todas aconteceram.

Foram dos momentos mais difíceis enquanto dirigente associativo?

Foi tudo bastante chocante, muito complicado para os clubes e para todos nós. Tivemos de estar fechados, em confinamento, foram dois períodos terríveis, mas agora já há mais confiança. As vacinas, as máscaras e os testes deram essa segurança. Voltámos à actividade normal, com regras mais rígidas e protectoras, sabendo que a qualquer momento poderemos ter de adiar um jogo ou parar campeonatos.

O movimento associativo mostrou-se resiliente.

Os clubes fizeram um trabalho fantástico, apoiados pelas autarquias. No futebol também tentámos ajudar com alguns apoios financeiros, como a redução dos custos das inscrições, das taxas de jogo e do seguro, uma série de incentivos que incentivaram o movimento associativo a sobreviver naqueles momentos terríveis em que não podiam contar com as mensalidades dos jogadores e sem ter os bares a funcionar, que são as mais importantes fontes de receita.

Parou muita coisa, mas não parou tudo.

Continuou a haver actividade nos seniores e fizemos uma prova dedicada aos sub-21 que teve uma adesão muito grande, até de clubes do distrito de Santarém, que se inscreveram. Este período de dois anos sem actividade deixa sequelas nos clubes, mas sobretudo nos nossos praticantes. Em termos físicos, basta um mês sem actividade para se perder tudo o que se tinha conquistado ao longo de uma vida.

Curiosamente, houve apoios que não foram aproveitados pelos clubes.

O programa Reativar, do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), tinha 30 milhões de euros para apoiar os clubes a fundo perdido no processo de retoma da actividade desportiva federada, mas só houve candidaturas para cativar 10 milhões. Os clubes não se candidataram, por motivos vários. Porque dava muito trabalho ou porque foi no Verão e faltavam algumas personagens nos clubes. Porque estavam mais preocupados em pôr a nova época a andar ou porque havia falta de documentos que eram pedidos - e havia ali algum rigor burocrático. Entre os clubes filiados na Associação de Futebol de Leiria, apenas 56% da verba foi aproveitada. Foi uma pena, porque todos os apoios eram fundamentais para ajudar a recuperar a tesouraria dos clubes.

Houve talentos que se perderam?

Sim, a todos os níveis. Há talentos que se perderam porque deixaram de ter a sua actividade, há também os que se perderam por causa daquelas fases fundamentais da passagem da puberdade e há talentos que se perderam porque passaram a ter outros centros de interesse. Houve uma perda muito grande, tanto que o grande objectivo é tentar fazer com que se recuperem o número de praticantes e número de equipas. De início, houve um grande entusiasmo dos clubes, mas agora que já estão consumados os campeonatos, houve uma redução de 5% de equipas e de 7% de atletas em relação a 2019/20.

“Como é possível que o Desporto Escolar, com boas infra-estruturas e professores preparados, tem menos procura do que os clubes?”

A Associação de Futebol de Leiria suspendeu as actividades dos petizes, benjamins e traquinas até 9 de Janeiro. Porquê?

Essas actividades continham a possibilidade de concentrar um número significativo de equipas. Por exemplo, tínhamos um encontro previsto para a Vieira, com 24 equipas. Toda a gente sabe que há turmas do primeiro ciclo a ficar em casa e os clubes a pedir adiamento de jogos. Tomámos essa decisão por estarmos bem avisados e para não alimentar uma crise. No futuro, vamos ter de estar cientes deste problema, como já estamos da gripe e da pneumonia. Vamos ter de conviver com a pandemia e ter normas de segurança que terão de ser cumpridas.

O distrito de Leiria já está bem coberto de infra-estruturas?

É curioso que vários clubes aproveitaram a pandemia para para melhorar e revitalizar as instalações. No distrito houve uma grande evolução. Não há comparação com o que era há uma série de anos e os pelados desapareceram. É bom que isso tenha acontecido. Há clubes que tiveram de procurar campos há muito tempo parados e recuperá-los para poder dar resposta à procura que tinham.

Mas não chega.

Os clubes cresceram muito e até podem ter um campo de relvado natural e um sintético, mas têm 13, 14 e 15 equipas e não conseguem crescer, mas aqueles que querem chegar a um nível mais alto na formação precisam de muito mais. Numa reunião recente com o presidente da FPF foram discutidos três constrangimentos que existem no distrito de Leiria e que impedem o aumento do número de praticantes. O primeiro é as instalações, porque os clubes não podem ter um campo, precisam de ter três ou quatro, mas não há o espaço e as verbas para fazer esse investimento. É bastante difícil chegar a um presidente a dizer que queremos aumentar o número de praticantes quando ele está saturado e bloqueado, com três ou quatro equipas a treinar ao mesmo tempo.

Quais são os outros constrangimentos?

Um é a falta de árbitros: quem é que depois arbitra os jogos? Este ano já fizemos dois cursos, com aproveitamento de 38 novos árbitros, e vamos fazer outro em finais de Janeiro. O maior problema da falta de árbitros é o esgotamento dos que estão no activo. Não havendo árbitros, estamos a pôr em causa a verdade desportiva. É um incómodo muito grande para os clubes, dirigentes, treinadores e jogadores. O outro constrangimento é a falta de dirigentes. O movimento associativo benévolo está com problemas, é cada vez mais difícil encontrar essas pessoas que dão muito sem receber nada em troca. Ainda assim têm começado a aparecer mulheres, o que antes era raro. Têm surgido de forma natural e progressiva.

Como compreende, apesar dos campos lotados, o facto de os miúdos chegarem aos clubes cada vez mais cedo?

Os clubes estão a fazer algo que está na Constituição e complementa a obrigação do Estado português em promover a actividade física e o desporto através das aulas de Educação Física nas escolas e do Desporto Escolar. Nos escalões mais baixos estão a ter uma função fundamental e que deveria ser mais desenvolvida pelo Estado português. Até era uma boa oportunidade, já que vamos para eleições legislativas, para haver propostas reformistas para o desporto em Portugal.

Porquê?

A pandemia veio evidenciar a grande importância e a função pública dos clubes ao permitirem uma prática que não é substituída pela disciplina de Educação Física nem pelo Desporto Escolar. Fazem um trabalho que devia ser da responsabilidade do Estado, que é dar a oportunidade aos jovens de cinco, seis, sete, oito nove e dez anos de terem uma actividade física estimulante, genérica e variada de iniciação desportiva em dois ou três momentos de 45 minutos por semana. Ainda assim é pouco, por a estimulação devia ser diária.

O trabalho feito pelos clubes é extraordinário e vai compensar a ausência de estímulos de actividade física das crianças”

Mas há quem entenda que os clubes estão a promover a especialização precoce.

Não é, porque especialização precoce a este nível implicava ter actividade sequencial, todos os dias, três horas por dia. Nem há campos para isso! Este trabalho feito pelos clubes é extraordinário e vai substituir e compensar a ausência de estímulos de actividade física das crianças. Os treinadores são altamente conhecedores, meticulosos e não permitem atropelos como havia anteriormente. É um trabalho que devia ser compensado publicamente.

Não acredita nessa teoria?

Seria até contraproducente, porque até à puberdade não se desenvolve a parte muscular da pessoa, apenas a parte coordenativa. Tem de se treinar é a coordenação, com muita variedade e riqueza de estímulos. Se não for bem feito, então som, aos 18 anos desistem, porque estão fartos de ser massacrados por tácticas e pelo treino físico.

Devia haver uma ligação maior entre o desporto federado e o Desporto Escolar?

É importante haver uma atitude reformista no desporto em Portugal e fazer a análise de que ligação tem o Desporto Escolar com o desporto federado. Notamos, infelizmente, que é algo a funcionar em paralelo, com os mesmos intervenientes que até competem entre si. O Desporto Escolar tem menos praticantes do que o desporto federado e isso é contra-natura. Como é possível que as escolas, com boas infra-estruturas e professores preparados, têm menos procura do que os clubes, onde os treinos são depois das 18:30 horas, mas onde as crianças deliram por fazerem o que mais gostam?

Entende que, idealmente, não deveria haver esses escalões nos clubes?

Podia haver, mas não com esta força, justificada pela ausência de oferta na escola pública. Deveria haver mais preocupação das escolas em oferecer aos miúdos uma prática regular e muito variada. A importância da actividade física desportiva tem importância no desenvolvimento afectivo, motor, cognitivo e chega ao raciocínio lógico-matemático. De uma forma lúdica estamos a ajudar a raciocinar ou a encontrar a solução para um problema. No fundo, estamos a preparar bons cidadãos.