Sociedade

Mário Cláudio: “O boato resulta da necessidade que as pessoas têm de ‘mobilar’ as suas vidas”

4 mar 2016 00:00

O escritor fala da escrita, da construção de memórias, da espiritualidade e da nossa relação de maior proximidade com os entes queridos que já partiram. Aborda ainda a mecânica do boato e o modo como “temperamos” as nossas vidas

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Jacinto Silva Duro

Quando sai à rua para ir tomar um café, é Rui Barbot Costa ou Mário Cláudio?
Nunca penso nisso e nunca me dou conta de ser uma coisa ou outra. A maior parte das pessoas trata-me pelo meu nome de autor. Só os meus amigos muito antigos ou familiares me conhecem pelo meu nome civil. As pessoas com quem me cruzo ou conhecem de vista ou por motivos profissionais tratam-me pelo meu nome de autor.

Antes de Astronomia, o seu último livro, publicou uma trilogia marcada por temas polémicos. Em Boa Noite Sr. Soares, o primeiro da livro da trilogia e, no segundo, Retrato de Rapaz, aborda a homossexualidade e, no terceiro, O Fotógrafo e a Rapariga, explora um tema tabu: uma relação entre um homem e uma menina, que assume contornos de pedofilia… Gosta de carregar os seus livros com polémica?
Calhou, nessa trilogia. Procurei analisar o contexto das relações humanas em pessoas com idades muito diferentes. Ou as relações de amizade como a de Pessoa com o jovem que trabalhava no escritório onde ele era tradutor ou aquelas que já têm uma grande carga erótica. Parece que não há grandes dúvidas de que Leonardo da Vinci, a propósito do segundo livro da trilogia, era homossexual, mas ali o que se verifica é uma situação de homo-erotismo, muito mais do que de homossexualidade. No terceiro caso, de Lewis Carrol e Alice Liddell, que foi modelo para a Alice no País das Maravilhas e sua modelo fotográfico, fica mais evidente o seu deslumbramento pelo corpo desta rapariga e de outras que ele fotografou. Na época, não tinha a conotação que tem hoje e não foi uma declarada situação de pedofilia. Não há qualquer prova de que Lewis Carrol tenha ido mais longe do que o puro platonismo na relação.

É por isso que Alice no País das Maravilhas passa incólume pelos pingos da chuva e continua a ser tão popular?
Sim. Já houve muita gente que analisou o contexto da Alice no País das Maravilhas, à luz da sexualidade de Lewis Carrol, que era, para nós, hoje, perversa: a pedofilia. Esta continua a ser criminalizada, num mundo onde as outras formas de sexualidade deixaram de o ser. Algumas começaram a aparecer com um carácter de normalidade. Sabemos que, nas relações heterossexuais, há práticas que são hoje correntes e que, no século XIX, eram vistas como perversas. É o exemplo da sexualidade oral. Esses tabus, deixaram de existir, mas prevalece o da pedofilia, com toda a justificação. É uma prática doentia, patológica e criminosa, na medida em que as pessoas envolvidas não têm uma paridade em termos de disponibilidade do corpo. Um adulto pode dispor e expor o seu corpo como bem entender, mas uma criança não o pode fazer.

Entre os comportamentos que hoje são aceites e que antigamente eram considerados perversos, há a questão da homossexualidade. Depois do casamento entre pessoas do mesmo sexo, há cerca de dois anos, assistimos a um bruá, originado no Parlamento, em relação à adopção por casais homossexuais. Em Dezembro e novamente em Fevereiro, depois do chumbo do Presidente da República, a adopção foi legalizada e sem polémicas. Afinal, havia razões para tanto combate?
Também se prevê que, eventualmente, a Igreja Católica, venha a ter uma atitude diferente, de maior tolerância e aceitação. O único comportamento realmente condenado foi a pedofilia, ao longo de toda a história. Não há exemplo de uma civilização que tivesse admitido amplamente a pedofilia. Mas voltando à sua pergunta, os portugueses estavam preparados. A sociedade portuguesa sempre foi muito tolerante relativamente a comportamentos minoritários que fogem à norma. Sempre foi uma sociedade onde havia atitudes de alguma repulsa, de troça e de perseguição a nível laboral, mas se nunca atingiu as proporções verificadas nos países do norte da Europa na Idade Média, onde a sodomia era muito perseguida e penalizada com pena de morte e torturas… Em todos os países do sul, porventura mais próximos da vertente greco-latina, isso não se verificou. A Igreja da pré-Reforma tinha uma grande abertura em relação a situações de homossexualidade. Houve Papas que tiveram práticas homossexuais… até os grandes artistas homossexuais, que foram empregados pelo Vaticano, de Miguel Ângelo a Leonardo da Vinci, eram trabalhadores como os outros, aceites sem que houvesse qualquer relutância em admitir o seu comportamento. No sul da Europa, há uma permissividade muito maior. A tendência perante a homossexualidade é de fechar os olhos. Infelizmente, em relação à pedofilia, também foi assim, durante muito tempo.

Um romancista é também um psicólogo que desconstrói e reconstrói a alma das personagens?
O romancista é, sobretudo, alguém que regista e é um espelho dos comportamentos humanos e da sua dinâmica, mas que não faz a avaliação desses comportamentos, como fazem os psicólogos. O romancista é uma pessoa que se debate com os comportamentos humanos, mas que não é capaz ou se é, não se interessa por isso, de dizer que, em determinado caso, estamos perante uma situação de Complexo de Édipo, ou que, noutro caso, já é o Complexo de Electra, ou que há uma transferência ou projecção… coisas que fazem parte da linguagem psico-analítica. Isso não cabe no mundo do romancista. Imagine o que era se tivéssemos de ler Eça de Queirós a falar dos amores de Carlos da Maia e Maria Eduarda e ter de entrar, permanentemente, em linha de conta com as infâncias dele e dela para justificar aquela paixão…

O subterfúgio do romancista é também deixar ao público o ónus de chegar a essas conclusões.
Exactamente. O texto de um romancista está aberto, ele próprio, a uma interpretação psico-analítica, mas não é um exercício psicanalítico.

A sua mãe faleceu há seis meses. Há verdade na ideia de que só deixamos de ser crianças quando a nossa mãe morre?
Poderíamos dizer que a morte da mãe é uma espécie de corte definitivo do cordão umbilical, mas tenho de dizer que não acredito nisso e por uma razão simples. A morte da minha mãe não significou, para mim, uma separação. Significou uma mudança de estado e, sobretudo, uma mudança de dimensão de convívio. Continuo a estar com a minha mãe diariamente e não sinto que haja uma separação completa. Isso acontece a algumas pessoas que têm alguma preocupação com a espiritualidade e que acreditam que, quando as pessoas morrem, os laços de proximidade apertam-se mais. Sentimos as pessoas mais dentro de nós, depois de estarem mortas. Acredito nisso e tenho-o testemunhado na minha vida com amigos e familiares. Uma vez, numa entrevista, perguntaram ao Manoel de Oliveira como é que ele reagia perante a morte – a dele e a dos outros. Ele disse que a morte era uma coisa que muita gente da área da filosofia e da espiritualidade diz não existir. Que a morte e a vida são um contínuo e a mesma coisa. Não se pode dizer que aqui acaba a vida e ali começa a morte. Pode dizer-se que há um momento chamado nascimento e um chamado morte. Os orientais são mais esclarecidos, porque opõem a morte ao nascimento e não à vida. Nós opomos a morte à vida, como se a morte não fosse também vida. Depois, o Manoel de Oliveira perguntou ao entrevistador: “o seu pai está vivo?” Ele respondeu-lhe que não. “Então o seu pai não existe?” O jornalista ficou em silêncio a olhar para ele e Manoel de Oliveira continuou: “qualquer um de nós pensa sempre nos seus familiares mais chegados como estando presentes… de uma qualquer forma”.

Os seus antigos alunos da Escola Superior de Jornalismo dizem que além de ser muito, muito exigente, lhes fazia, por vezes, uma "análise psicológica". Este exercício servia para separar o trigo do joio?
Nunca pensei nisso nesses termos, embora pudesse ter esse efeito, o que é salutar em alguns casos, porque me apareciam alunos na Escola Superior de Jornalismo, que não tinham entrado noutras escolas, e achavam que ali teriam uma possibilidade, mas que não tinham a mínima queda para o jornalismo. A minha preocupação era sempre a de colocar as pessoas a confrontarem-se com elas próprias. Dei aulas ao primeiro ano, mas sobretudo ao terceiro, de Cultura Portuguesa, e os jovens que me apareciam vinham muito mal preparados e essa desinformação era perturbadora, em especial nas áreas da História, Português e da Geografia. Quando isso convivia com a arrogância, era intolerável. Por isso, era importante pô-los em confronto consigo próprios e isso deu sempre bons resultados. Lembro-me de um aluno que tinha um comportamento muito difícil durante as aulas - era muito inteligente - e chegou mesmo a agredir um professor. Na primeira aula comigo, tentou ser rebelde e eu deixei-o. No fim, chamei-o à parte e expliquei-lhe duas coisas. Contei- -lhe o mito do Narciso e disse-lhe onde essa paixão por si mesmo o poderia conduzir. A partir daí tornámo-nos amigos. Depois vim a saber que, uma das razões porque ele era assim, era por ser maltratado pelo pai, que lhe batia com chicote... à antiga portuguesa. Uma coisa inimaginável.

Atendendo ao que aconteceu com o Arrastão que nunca aconteceu em Carcavelos e o ataque a mulheres na Alemanha imputado aos refugiados sírios e que afinal foi cometido por outras pessoas, os media estarão mais permeáveis à mecânica do boato, devido à influência das redes sociais e da transmissão massiva de informação não confirmada?
O boato é uma coisa inelutável. Nas minhas aulas, fazia um exercício onde transmitia uma frase a um aluno, que tinha a obrigação de a retransmitir ao ouvido do colega do lado e assim sucessivamente. Quando chegava ao último aluno, a frase já era completamente diferente. O boato faz parte da comunicação. O que falha sempre, neste processo de objectividade, são as mentes. Vivo numa zona de classe média muito baixa e, nos últimos meses, foram "noticiadas" duas mortes de pessoas que estavam vivas. A pessoa que me falou dos falecimentos, passado pouco tempo, veio a correr dizer "afinal, não morreu, acabei de o ver, há bocado, na rua". Isto significa que há um fenómeno muito interessante de erotização da morte.

Erotização?
Há pessoas, sobretudo as que têm uma vida sentimental muito árida, que erotizam o desastre e a morte. A minha empregada, que é uma divorciada, que não tem namorado, que não tem nada disso, fica exaltadíssima, quando lhe contam que houve um acidente e que morreram trezentas e não sei quantas pessoas. Tenho de dizer isto: são pequenos orgasmos, que substituem os que deveriam ser naturais. Estas exaltações do desastre e da catástrofe são um comportamento muito vulgar e mais comum nas mulheres. "Morreu fulano de tal! Morreu tudo! Morreram todos, todos!" O boato resulta da necessidade que as pessoas têm de "mobilar" as suas vidas, de as reinventar, porque elas são demasiadamente anódinas, para terem algum interesse. Acrescentam coisas para que a vida tenha outro relevo.

Perfil
Mário Cláudio e Rui Barbot Costa, moeda de uma só face

Não chegariam as páginas ocupadas por esta entrevista para relatar todo o currículo de Mário Cláudio. Um dos maiores romancistas e poetas contemporâneos, nasceu Rui Manuel Pinto Barbot Costa, a 6 de Novembro de 1941 no Porto.

Viveu numa casa da classe média na zona da Boavista, numa casa onde havia várias criadas, incluindo uma só para si. Licenciou-se em Direito, em Coimbra, como era desejo do pai mas a sua ambição era outra.

Na sua alma mater voltou a licenciar-se como bibliotecário-arquivista, antes de rumar à University College de Londres para um grau de master of Arts em biblioteconomia e Ciências Documentais. O complexo autor sobre quem Vergílio Ferreira escreveu nas páginas do seu diário, Conta Corrente, que "era um dos grandes valores da geração seguinte", vive, no Porto, numa casa decorada com bom gosto, onde os livros são uma presença constante em todas as divisões - corredores incluídos.

Ficcionista, poeta, dramaturgo e ensaísta, viu serlhe atribuído o Grande Prémio de Romance APE, em 1984, o Prémio Pessoa, em 2004, o Prémio Clube Literário do Porto, em 2005, o Prémio Personalidade do Ano, em 2006, o Prémio Vergílio Ferreira, em 2008.

Em 2015, voltou a receber o Grande Prémio de Romance e Novela da APE com a sua novela Retrato de Rapaz. O seu último livro, Astronomia, é uma autobiografia romanceada.

Galardões aparte, Mário Cláudio ou Rui Barbot Costa – já nem ele os distingue – é um homem de espírito afável, bem disposto e de grande espiritualidade, fiel a grandes e duradouras amizades.

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