Sociedade

Pandemia obriga professores a reinventarem-se

16 abr 2020 10:31

Dificilmente alunos, professores, pais e até o Ministério da Educação vão esquecer este ano lectivo. O 3.º período começou na terça-feira com ensino à distância até ao 10.º ano. Aulas presenciais só para as disciplinas de exame no 11.º e 12.º anos

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Alunos têm aulas à distância com apoio de várias plataformas digitais
Ricardo Graça

Até ao 10.º ano os alunos não voltam à escola este ano lectivo. O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro, António Costa, que explicou que o 3.º período prosseguirá com ensino à distância, com avaliação, mas sem provas de aferição nem exames nacionais no ensino básico.

Os professores, que no final do 2.º período já tiveram de se organizar para manter as aulas à distância de um clique, voltam a reorganizar os seus planos de trabalho para continuarem a dar matéria através de plataformas digitais.

Para muitos é um autêntico desafio, que compreendem ser necessário. A dúvida que assiste a todos prende- se com a telescola, agora apelidada de #EstudoEmCasa, que se inicia a 20 de Abril no canal RTP Memória (sinal aberto), com conteúdos programáticos do 1.º ao 9.º anos.

Segundo António Costa, o ensino à distância “será reforçado com o apoio de emissão televisiva de conteúdos pedagógicos que complementarão, sem substituir, o trabalho que os professores vêm mantendo com os seus alunos".

“Desconhecemos quais são os conteúdos que vão ser produzidos. Só quando começar é que iremos perceber”, adiantam vários professores ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA.

Filipa Pires, professora de Matemática no Agrupamento de Escolas de S. Martinho de Porto, Alcobaça, admite que a aprendizagem de quem só tem acesso à telescola será difícil. “Esses alunos não têm forma de colocar as dúvidas logo a seguir. Serão sempre prejudicados face aos outros.”

Na escola de Filipa Pires há estudantes sem acesso a computador e internet. A solução passará por criar um posto de entrega e recolha de material, uma vez por semana. “Os professores enviarão para a escola os materiais pedagógicos e alguém da escola irá deixar no local previamente combinado, que deverá ser a junta de freguesia. Os encarregados de educação levantarão as fichas e deixarão as dúvidas e os trabalhos realizados.”

No projecto #EstudoEmCasa um dos problemas que se levantam é o ritmo dos alunos ser diferente, assim como a matéria que estão a dar. “Dão autonomia às escolas para gerir o currículo e cada professor pode começar pelo assunto que entender. Quem estiver a assistir à telescola pode deparar- -se com um conteúdo que já deu ou um completamente novo. Os pais não têm competências, tempo, nem paciência para acompanhar os filhos”, constata Graça Sampaio, professora aposentada, que durante vários anos esteve à frente da Escola Básica (EB) D. Dinis, em Leiria.

A docente sublinha que a telescola teve um contexto e era acompanhada por um monitor. “Na altura existia um programa e um manual únicos, o que faz toda a diferença.” Professora de Matemática na EB José Saraiva, em Leiria, Gabriela Reis considera que o ensino pela televisão não cria qualquer relação com o professor e questiona: “como vão dar matemática dos 5.º e 6.º anos como está no programa, quando há matérias bem diferentes?”

A docente também vai esperar para ver, lamentando que não tivesse sido dado previamente conhecimento dos conteúdos aos professores. Também Gabriela Reis lembra que a flexibilização curricular faz com que uma escola dê uma matéria em determinado período e outra trabalhe o mesmo assunto num momento diferente.

“A telescola pode funcionar apenas como consolidação de conteúdos.”

Aulas síncronas e assíncronas

Depois da decisão do Governo de não reabrir as escolas para o ensino básico, os professores e respectivas direcções desdobram-se a escolher plataformas e em trabalhar conteúdos adequados ao ensino à distância, de modo a que a lição digital seja o mais idêntica a uma sala de aula. O trabalho desenvolvido será dividido em aulas síncronas e assíncronas.

Teresa Schurmann, professora de História no Colégio Conciliar de Maria Imaculada, em Leiria, já deu as primeiras aulas online e confessa-se surpreendida com a receptividade dos alunos.

“Não sei se é por ser novidade, mas correu muito bem. Preparei tudo como se estivesse numa aula presencial. Houve bastante interacção: mandei ler documentos, fiz perguntas direccionadas, realizei um quiz e passei vídeos da escola virtual. Os estudantes responderam muito bem”, revela.

A docente admite que é “tudo novo” e que os professores precisam de se “reinventar”. Olhando para a situação de uma forma optimista, Teresa Schurmann afirma que esta obrigação provocada pela pandemia pode vir a ser aproveitada para que haja mais um salto na educação. A rede digital pode ser um problema nestas aulas.

Como vai ser o 3.º período?
  • Alunos do 1.º ao 10.º ano apenas terão aulas à distância.
  • A partir do dia 20, a RTP Memória passa a transmitir conteúdos educativos para o ensino básico.
  • Não há provas de aferição nos 2.º, 5.º e 8.º anos, nem provas finais no 9.º de Português e Matemática.
  • A avaliação do 3.º período é feita pelos professores, que se irão basear no “esforço de recuperação” dos alunos, tendo em conta que não se realizarão testes
  • Os alunos dos 11.º e 12.º anos poderão regressar às aulas presenciais no dia 4 de Maio, mas é obrigatório o uso de máscara e o
    distanciamento social. Alunos e professores de risco podem ser dispensados.
  • Os exames do ensino secundário, agendados para Junho, realizar-se-ão entre 6 e 23 de Julho. A 2.ª fase decorre entre 1 e 7 de Setembro.
  • Os exames que se destinam à aprovação de disciplina foram cancelados. Os alunos do ensino secundário apenas têm que fazer
    exame às disciplinas que escolherem como prova de ingresso nos cursos do ensino superior a que queiram candidatar-se.
  • Os alunos do secundário que não pretendem prosseguir estudos não têm de fazer qualquer prova final.
  • O calendário do concurso nacional de acesso ao ensino superior também é reajustado, com as colocações a atrasarem para 28 de
    Setembro.
  • As provas finais do ensino profissional, que são validadas por um júri, terão de ser feitas à distância ou em condições que garantam o
    distanciamento.

 

“Por vezes, cai a internet e há interrupções. Quando se faz uma pergunta há um hiato de tempo até ter a resposta do aluno”, salienta a docente. Catarina Pereira, aluna do 11.º ano, considera que as aulas presenciais “são muito mais produtivas”.

Online perde-se muito mais tempo. A ligação, por vezes, é má e nem todos conseguem aceder facilmente às tecnologias para trabalhar. Em Portugal, as escolas são pouco tecnológicas e os professores ainda se estão a adaptar às plataformas de ensino à distância, porque é uma realidade totalmente nova.”

A estudante exemplifica com o caso da Suécia, onde as escolas emprestam equipamentos aos alunos. “Não há ninguém que não tenha computador ou internet. Em Portugal, quando estava no 1.º ciclo ofereceram ou era possível adquirir a um preço simbólico o computador Magalhães. O caminho deve ser esse. Esta é uma oportunidade para tornar as escolas mais tecnológicas. O Ministério da Educação deveria garantir, de alguma forma, que todos os alunos, independentemente da sua condição económica, tivessem um computador. Poderia ser por empréstimo, por exemplo, ou ser pago um pequeno aluguer”, sugere Catarina Pereira.

A jovem aplaude o adiamento dos exames, tendo em conta que desde o encerramento das escolas “perderam- -se muitas aulas”. “Os professores estão muito disponíveis para ajudar-nos no que for necessário. Têm disponibilizado várias plataformas para termos acesso a mais conteúdos e estão sempre prontos. Mas, à distância, é sempre diferente.”

“É a solução possível, que obviamente cria dificuldades quer a professores quer a alunos, famílias e até ao Ministério da Educação. É preciso, sobretudo, salvaguardar a saúde e a segurança. Sabemos que ainda há alunos que não têm computadores nem internet e é óbvio que esta situação vai acentuar ainda mais as diferenças sociais, culturais e económicas dos estudantes”, constata Pedro Biscaia. O professor de História da Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, em Leiria, acredita que os alunos médios/bons e bons terão maior facilidade com a telescola e com o ensino à distância.

Quando estava no 1.º ciclo ofereceram ou era possível adquirir a um preço simbólico o computador Magalhães. O caminho deve ser esse. Esta é uma oportunidade para tornar as escolas mais tecnológicas” 
Catarina Pereira

“Os desinteressados e desmotivados não sei se conseguiremos cativá-los à distância.” Concordando que é difícil motivar os alunos à distância, Teresa Schurmann apela à criatividade como a integração de jogos nas aulas, como o quiz.

Graça Sampaio acrescenta que as desigualdades já existem quando o ensino é presencial, porque “há alunos que quando chegam a casa têm livros à disposição e podem ter explicações e outros enfrentam um lar desestruturado”.

“Não acredito nada no ensino à distância. É extremamente difícil tê-los atentos, sobretudo, quando há quatro ou cinco semanas que não saem de casa, não têm recreio e os pais estão em teletrabalho.”

Protecção de dados

Pedro Biscaia levanta outra questão sobre o ensino à distância: a protecção de dados. “Há colegas que já relataram que alunos recortaram a fotografia do professor, que no meio das sessões lançaram filmes pornográficos…”

“Todos estamos a aprender. Com 30 e muitos anos de ensino sinto-me agora inexperiente e inseguro. É uma nova modalidade que não estamos preparados”, acrescenta Pedro Biscaia.

Teresa Schurmann alerta para eventuais erros que possa cometer nas plataformas digitais e apela à compreensão de pais e alunos. “Estou também a aprender e no CCMI formámos um grupo para apoiar nestas questões do digital.”

Filipa Pires também concorda que esta é uma realidade bem diferente e que não será fácil, sobretudo, numa disciplina como a Matemática.

“À distância não consigo acompanhar a resolução dos exercícios passo a passo e intervir logo nas dificuldades. Nas aulas presenciais estou mais em cima deles e os alunos também gostam desse contacto com o professor.”

Se o ensino básico não regressa este ano lectivo à escola, os estudantes do 11.º e 12.º anos terão aulas presenciais às disciplinas em que farão exame para ingresso no ensino superior a partir do dia 4 de Maio, se a situação epidemiológica assim o permitir. António Costa anunciou que professores e alunos terão de usar máscara e garantir o distanciamento social.

Docentes e estudantes de risco podem ser dispensados. Este pode ser o caso de Filipa Pires. Intervencionada a um pulmão é uma pessoa de risco perante uma infecção pelo novo coronavírus.

“Além de ter esse problema, tenho um filho menor de 12 anos a quem tenho de dar assistência. Na minha situação há vários colegas e acredito que também haja pais que não vão deixar os filhos irem à escola”, alerta. “Será que o Ministério da Educação sabe quantos professores estão nessa situação?”, alerta ainda Pedro Biscaia, ao recordar que Portugal tem um corpo docente bastante envelhecido.

Avaliação à distância

No que respeita à forma de avaliação do ensino básico, "será feita em cada escola pelos professores que melhor conhecem o conjunto do percurso educativo de cada aluno, sem provas de aferição, nem exames do 9º ano", referiu António Costa.

No secundário, os exames foram reagendados entre 6 e 23 de Julho (1.ª fase) e 1 a 7 de Setembro (2.ª fase), mas só serão realizados às disciplinas que os alunos elejam como provas de ingresso para efeitos de acesso ao ensino superior, sendo ainda permitida a realização desses exames para melhoria de nota, relevando o seu resultado apenas como classificação de prova de ingresso.

Por exemplo, o exame de Português exigido até agora a todos os alunos, deixa de ser necessário para os estudantes que não precisam desta prova para o curso em que vão ingressar.

Assim, haverá apenas a avaliação interna às restantes disciplinas, não se realizando os exames cuja nota iria contribuir para os valores finais na pauta.

“Avaliar os alunos no 3.º período é a maior estupidez do século”, critica Graça Sampaio, que considera que a avaliação é “muito delicada” e obriga o professor a ter um conhecimento muito profundo do aluno.

“Não contam apenas as notas dos testes. Há o comportamento, o empenho… Não há condições para uma avaliação minimamente séria. Mas, está-se muito amarrado aos testes e às notas. Que mal tem se este ano derem no 3.º período as notas do 2.º?”

Pedro Biscaia admite que o ensino secundário poderia também não abrir. “Como é que se garante o distanciamento social numa turma de 30 alunos? Vai ser desdobrada? O professor passa a leccionar mais horas?”, questiona o docente.

Também Filipa Pires levanta dúvidas: “vamos ter dois professores a dar aulas à mesma turma? Quem fica com o docente que já tinha e quem fica com o novo?”.

Pedro Biscaia salienta que na disciplina de História não é tão grave os alunos não terem bases. “Não é por isso que vão deixar de ser bons profissionais ou bons pais. Mas, por exemplo, na Matemática, será complicado para quem pretende seguir engenharia.”

Educação especial
Pais são essenciais no apoio aos alunos
Os alunos da educação especial terão ainda mais dificuldades no ensino à distância do que os restantes colegas, mas é possível realizarem trabalhos através de aulas síncronas. Quem o garante é Idalina Gordo, professora de educação especial no Agrupamento de Escolas D. Dinis. “Será uma nova forma de aprendizagem para todos. O perfil destes alunos não é colocar umas fichas na plataforma e irem fazendo. É necessário um trabalho de interacção e de feedback imediato”, adianta. Idalina Gordo preparou um plano individual para cada aluno e vai tentar contar com a colaboração dos pais, que têm de ser o seu “braço local”. “A solução são as aulas síncronas, mas os pais têm de estar lá. Terão de ser o meu parceiro, porque há alunos que têm pouca ou nenhuma autonomia”, reconhece. O problema poder-se-á colocar quando os pais estão em teletrabalho e pouco disponíveis. Percebendo a dificuldade, Idalina Gordo sugere que pais e professor combinem uma hora e consigam trabalhar, pelo menos, meia-hora em conjunto com o aluno. Por outro lado, “há sempre um pequeno trabalho de autonomia que é possível ser feito”.