Viver

Queremos mesmo vestir a saia ao miúdo?

10 mar 2016 00:00

'Ninjas e Princesas': Eu até me considero um gajo vagamente moderno, mas há peças da modernidade que não encaixam no meu puzzle conceptual de existência.

Fotografia: Ricardo Graça

E agora que já usei modernidade, conceptual e existência numa só frase, podemos prosseguir comigo confiante. A telescola funciona!

Sim, sim, agora que vivemos num instante em que já não há crianças no Bangladesh a coserem pullovers à maluca com as suas pequenas mãos de pele e osso para cagarmos o cão na próxima estação.

Agora que respiramos um mundo em que nenhuma menina é mutilada, genitalmente ou noutra qualquer atrocidade com advérbio de modo. Onde nenhuma rapariga tem de ver as costas do marido que não escolheu por entre as persianas negras de uma religião castradora.

Num tempo perfeito em que nenhum Aylan atravessa o Mediterrâneo em modo roleta russa, agarrado ao terror e ao seu salva-vidas imaginários. Podemos finalmente coçar o umbigo tranquilos sob a luz anónima da internet, porque já não há crianças assassinadas, violadas, abandonadas, subnutridas, humilhadas, sem futuro, sem escola e sem esperança nesta maravilhosa bola azul que tão bem tratamos.

Na realidade faz tempo que o lado negro, vil e pérfido do Homem abandonou o edifício, estamos por isso todos de parabéns. Vamos lá então aplaudir de pé e carregar num grande like redentor o facto daquela cadeia de comida caseira de poucas calorias, sem animais ligados à máquina e de zero pegada ambiental deixar de ter diferenciação de género nos seus brindes da refeição feliz.

E já agora, imbuídos do espírito da última efeméride, aproveitemos para gritar que as mulheres são do caraças, postemos uma flor de apoio à causa, porque no fundo, ninguém faz snacks como elas.

Cada problema é um problema, eu sei, e devemos tentar resolver todos, certo, mas por vezes penso se no conforto da nossa crise, não andamos em problemas que não são problemas e se isso não será um problema. Chega deste discurso animador, passemos à catequese. Há ou não diferenças entre meninos e meninas?

Para mim há. Há ou não há diferenças entre seres humanos (dos a sério)? Para mim não. Claro que os miúdos podem brincar com bonecas e as meninas com carrinhos, estando isso relacionado com a orientação sexual ou não, mas achamos assim tão mal os miúdos preferirem estatisticamente o boneco azul que dá “porrada”, e as meninas a princesa de vestido rosa que voa, ao ponto de lhes impingirmos um grande cinzento unissexo?

Também vamos abolir os WC para homens e mulheres? Não devíamos antes pensar no quadro maior? Tipo: alimentação, saúde, educação, liberdade, igualdade, respeito, dignidade, essas utopias todas das condições económicas e sociais para que todos tenham uma vida digna, seja qual for a raça, o país, o credo, o género e tudo o mais?

Desculpem o momento lamechas à lá Miss Mundo, mas o estado do manicómio onde deixarei a minha prole preocupa-me.

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