Viver
Rita Gaspar Vieira, artista plástica: “Percebo que sou artista quando tenho consciência do meu desassossego”
Inaugurou quinta-feira, dia 6, a exposição "Murmúrio da semelhança", na Fundação Portuguesa das Comunicações.
Maria João Gamito escreve que, neste trabalho, fez “cópias, decalques, moldes e réplicas que transmitem, no papel, as semelhanças ou verosimilhanças dos espaços: Um chão, uma porta, um tampo de mesa”. O que a leva e como a leva a fazer esta reinterpretação do mundo?
O meu trabalho decorre de um olhar atento sobre o quotidiano, concretamente sobre as repetidas práticas que ele integra, que vão marcando os espaços e os objectos diariamente usados, dando conta de que eles são habitados/ usados. As obras que reuni nesta exposição foram desenvolvidas entre 2015 e 2016 recorrendo a um uso insistente do papel para registar os desenhos, que “encontro” latentes nos lugares que frequento. O uso das estratégias de trabalho referidas no texto da exposição revela o meu olhar, o foco da minha atenção que é, aliás, uma questão dominante no desenho e em toda a produção criativa em geral. As minhas obras decorrem da minha experimentação e dos meus interesses singulares. Enquanto artista, procuro constantemente modos para, a partir do que conheço e me é próximo, edificar proposições que apresentam questionamentos que vão dando conta do que entendo e do modo como me relaciono com o mundo. Como tal, o meu processo criativo é necessariamente uma reinterpretação do mundo que se refaz constantemente, para a qual preciso sempre de tocar uma vez mais cada superfície.
Doutorou-se em Desenho, licenciou-se em Pintura e estuda o modo como o gesto no quotidiano traduz o pensamento…
O gesto, a manualidade e a presença do corpo do artista são denominadores comuns na produção artística em geral e, concretamente, na Pintura e no Desenho. O meu percurso de investigação foi-se centrando numa procura do carácter essencial do desenho, bem como na sua simplicidade e portabilidade, que é reforçada pelo uso do papel. Nesse processo de trabalho, arte e vida diária foram-se misturando. Os procedimentos artísticos foram-se tornando, muitas vezes, os mesmos ou outros semelhantes aos que desenvolvia no âmbito das práticas diárias. E, centrando a minha atenção sobre eles, comecei a consciencializar os modos como diariamente revelamos, de formas silenciosas, diferentes interesses, ideias e opções... questões que trato nas minhas obras.
Como é que, consigo, funciona o “incidente criativo”?
O “incidente criativo” surge no meu trabalho oriundo de acasos, que reconheço como parte do processo criativo aceitando-os ao integrar nele os resultados desses acontecimentos, mas ele também surge como resultado de desvios deliberadamente criados por mim, por exemplo, no uso que faço dos media. Com estes acasos e desvios introduzo e integro o erro e a falha, que são partes da vida e também do trabalho artístico. No entanto, eles só fazem sentido enquanto elementos que se adicionam a uma rotina regular de trabalho, na qual há regras que servem de referência e de ponto de partida para a experimentação desenvolvida no atelier.
Em Março, montou a exposição Voyage autour de ma chambre, no Quarto 22, no Colégio das Artes, na Universidade de Coimbra. Aí o desafio era fazer não apenas um percurso dentro do quarto – que normalmente é um lugar muito íntimo e cheio de segredos – mas também pelo interior e pela relação pelo exterior da artista?
O projecto Voyage autour de ma chambre foi desenvolvido a partir da minha circunstância particular, como uma viagem interior a partir da qual, por comparação e análise do que me é próximo, eu propunha a cada observador que desenvolvesse o seu próprio olhar. Essa relação entre o interior e o exterior é tratada no livro de Xavier de Maistre que emprestou o título ao meu projecto, no qual uma viagem especulativa permite ao autor levantar questões sobre o domínio do comum na vida diária. Os objectos apresentados no meu projecto eram de uso comum, eram mesas, um estrado de uma cama e pedaços do chão da minha casa. Inseridos num discurso autoral, esses objectos eram postos em relação com o observador convidado-o a construir as suas paisagens e a situar a sua viagem interior. Por outro lado, a estrutura circular do espaço expositivo; que era fechada com uma cortina suspensa num varão, referenciava a própria história daquele espaço, que foi em tempos um hospital. Usei-a intencionalmente para acentuar a ideia do autour – do andar em torno, descrevendo um percurso que era o da sua própria história e também o de encontro do que ela tem de comum com as outras.
Perfil
Paixão pelo Desenho
Rita Gaspar Vieira nasceu em Leiria em 1976, onde reside e trabalha. Estudou Artes Plásticas – Pintura, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa ao que se seguiu um mestrado em Teorias da Arte, e recentemente, o doutoramento em Belas Artes, na especialidade de Desenho.
“A centralidade do Desenho na minha prática artística está relacionada com a minha vida diária, na qual também é relevante a minha prática da docência.”
Alia, hoje, o trabalho criativo à carreira de docente no ensino superior, na área do Desenho. É, aliás, no “branco do algodão”, que elege o seu espaço criativo de eleição.
“Percebo que sou artista quando tenho consciência do meu desassossego, que se processa sem datas nem limites muito definidos, mantenho apenas como linha de pensamento a valorização de uma procura constante, que surge e se afirma na vida e no trabalho em detrimento do alcance de certezas ou de um só ponto de chegada.”
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