Opinião

Âmago

11 set 2020 09:08

Quando o encontro entre uma pessoa e uma obra de Arte acontece – e para que se verifique não basta estarem no mesmo lugar físico ou temporal – o horizonte de possibilidades do indivíduo expande-se, e aí ocorre uma dimensão da existência que até então era desconhecida.

Toda a Arte transmite que não somos apenas seres produtores de algo (in)concreto (homo faber), e que as experiências estéticas poderão proporcionar extraordinários contributos à vida.

Também não somos apenas seres detentores de conhecimentos (homo sapiens), pois a existência humana pressupõe uma dimensão muito mais alargada, que inclui a dimensão lúdica e a activação dos sentidos, por via da comoção da alma e do corpo, imersos nos afectos.

A Arte permite-nos aceder, humildemente, e de forma quase inusitada e inconsciente, ao que nos ultrapassa e não dominamos, às nossas vulnerabilidades.

Convocanos, inadvertidamente, a que pronunciemos o nosso eu político, civilizacional, estético, cultural, impelindo-nos a experienciar um sentido gregário e de comunidade, comunicando com os artistas num diálogo interior (silente), instigador de uma espécie de mudança.

A Arte põe em causa os «lugares comuns », o estabelecido como norma e o convencionado.

Divergindo no espaço e no tempo, uma obra de Arte que é impressiva para quem a convoca e lhe encontra uma substância indizível, pelo impacto que produz quando desequilibra, comove ou irrita, torna-se intemporal e invariável.

É como se ao sermos expostos àquele objecto se entreabrisse em nós uma clareira para acolhermos o que é divergente, possibilitando descobrir o que, sem essa experiência sincrética, não tocaria no mais fundo de nós mesmos.

Quando o encontro entre uma pessoa e uma obra de Arte acontece – e para que se verifique não basta estarem no mesmo lugar físico ou temporal – o horizonte de possibilidades do indivíduo expande-se, e aí ocorre uma dimensão da existência que até então era desconhecida.

A experiência estética da beleza dá um contributo notável à existência: faz-nos sentir que integramos o lugar em que nos evadimos, estando imersos nessa voragem, ao contrário de uma qualquer outra experiência inusual de desacerto, que não seja intermediada por um gesto artístico.

E isso só é viável porque usamos a mente, esse universo onde poderão emergir, ser aprimoradas ou reajustar-se um sem-número de competências, por via da capacidade infindável da neuroplasticidade.

O acesso a esta ilha de liberdade individual que provém da submersão estética, de preferência no diálogo com os outros, com milhões de sinapses a intermediar, é um contágio que não ocorreria se não fôssemos expostos a esse acaso.

Uma obra de Arte interpela cada um dos cérebros que a perscruta, que a lê e decifra, para que faça a sua própria interpretação e se interrogue, e lhe acrescente algo de inédito, que se relacione com o acervo de memórias, referências ou narrativas similares, evadindo-se da realidade e do concreto, transformando-o.

O sistema sensorial é ávido de experiências de libertação como aquelas que são proporcionadas pela Arte.

Livre de preocupações, o cérebro não precisa de identificar tudo de forma funcional e automática, podendo divertir-se com o que sente e o emociona.

A capacidade de inventar histórias de ficção pode ser o momento-chave no surgimento da linguagem e do pensamento, ingrediente-chave da cognição, já manifestada há cerca de 44 mil anos, quando um humano entrou numa caverna duma ilha no território que é hoje a Indonésia, e fez aquilo que se considera ser a obra de Arte mais antiga da humanidade – uma pintura, cerne da essência.