Opinião

Cada um é muita gente: Ela e a vida

9 mar 2025 10:29

E ela foi hesitando, sofrendo, desconfiando e sendo o melhor que poderia ser naqueles instantes de tortura. Já não havia amor, só amargura 

Ela fica ali a tarde inteira. Parece não se mexer. Sentada, na cadeira, a fumar e a beber. Está sempre naquele café junto à estrada. Eu desço a rua, eu subo a rua, e vejo-a sempre a fazer nada. Só ali a existir, a conversar, a sorrir e a tentar passar o tempo, como se o tempo fosse tudo o que lhe restasse. Não terá trabalho, não terá família, talvez um cão que estará em casa a dormir no sofá velho que ela terá na sala.

A casa será velha, arrendada, um apartamento escuro num prédio da cidade. Terá sido casada, uma vida infeliz, triste, amargurada. Decidiu abandonar, não aguentava mais os gritos e as ameaças do marido. Ao início, sonharam com tudo, com uma vida bonita, filhos e uma cabana. Mas cedo o casamento caiu. Foi ele quem a traiu. Olhou para outra, foi atrás dela, mas não fugiu.

Foi vivendo duas vidas, assim escondidas, pela tristeza e pela mentira. Foi chegando tarde a casa, foi rejeitando a cama, o coração já não estava em brasa, só berros e lama. E ela foi hesitando, sofrendo, desconfiando e sendo o melhor que poderia ser naqueles instantes de tortura. Já não havia amor, só amargura.

Toda a ternura tinha desaparecido, ele já tinha ido embora, não se aguentavam nem um pouco, e agora, ele, louco, já sem ela e sem ninguém, volta de vez em quando para ter o que já não tem. Mas não consegue. Ele vem, mas ela diz sempre que não. Ele insiste, não desiste, mas ela não quer, e fica triste, ali a mulher. Ela tem outra solução, seguir com a vida dela. Já tentou, mas a sacana da depressão não a deixou. E ela por ali ficou. Sentada na cadeira, a fumar e a beber. À procura de nada, só de um sítio onde se proteger.

Estão outros sentados noutras mesas à volta dela, bebendo e fumando também, vendo televisão, lendo revistas e jornais, falando das vidas dos iguais a eles que se passeiam por aí. E ela aqui, neste café, passando a tarde com a vida como a vida é. Acorda, faz qualquer coisa pela rua, e lá vai para o café. Desempregada, sem nada para fazer, lá está está ela sentada, a fumar e a beber.