Opinião

Cada um é muita gente: Maringá menino

24 mar 2024 16:00

Nenhuma loucura seria maior do que aquela que lhe dão. Ele vive bem com pouco. Nós é que não

Há tanto tempo que ele anda por cá, que eu o vejo por aqui a caminhar. A sua casa é o Maringá. É sempre onde ele está, quando o quero encontrar. Nunca fui ter com ele, não sei como se chama, nunca lhe disse nada. Sei que, para mim, aquele lugar, para ele, é morada. Ele faz parte da cidade. Toda a gente o conhece, mas parece que ninguém lhe dá um nome ou uma medalha que ele merece ter apenas por ser. É que ele faz parte dali, ele é ali, mesmo sem saber - julgo eu que ele não sabe. Eu só vejo de fora e imagino.

Ele passa por mim, como passou agora, como se fosse um menino. A cara é igualzinha à do Robin Williams - ou eu é que vejo na cara dele a cara de alguém de quem eu gosto para que ele, de certa maneira, se aproxime de mim. A culpa não é dele, eu é que sou assim. E ele é como é, obviamente. Num lugar dele, com tanta gente. Com tantas lojas, tantos corredores, tantas portas, tantos amores que são família. Tudo é casa, ele é mobília. Ele por ali, a cuidar de tudo o que lá está.

Vai às raspadinhas ver se alguma tem prémio, na esperança de que alguém a tivesse raspado e, sem atenção, não tivesse reparado e a tivesse atirado para o chão. Se, algum dia, alguma tiver, se ele encontrar os milhões que procura, o que irá ele fazer? Alguma loucura? Ele já é visto como louco. Nenhuma loucura seria maior do que aquela que lhe dão. Ele vive bem com pouco. Nós é que não. Certamente, ele não faria nada. Olharia a raspadinha premiada, sorriria e seguiria com a sua vida. Que vida é essa que ele tem? Sempre cheio de pressa, como quem estivesse muito ocupado a cumprir um horário.

Rica vida a deste quase milionário que anda por aí. O rosto diz ternura e o rosto sorri um sorriso leve, a passar por despercebido. Ele vive a vida breve, de cabelo comprido. Parece um fantasma - não lhe ouvimos os passos nem a voz. Os gestos são escassos, o resto somos nós. Faz parte da paisagem, confunde-se com tudo o que nela permanece. E lá anda ele em viagem, a pé, pela vida que lhe aparece.