Opinião
Cada um é muita gente: Os gatos
A escuridão não o assusta. Eu diria que custa fazer o que ele faz. Mas, enquanto quase toda a gente está a dormir, ele tem o mundo inteiro só para ele. Aquela escola
Ainda não há noite, e ele acaba de chegar. Ainda há garotos a correr, alguns cá fora, escondidos, a fumar. A maioria dos que estão ainda anda pelo recinto da escola como se estivesse a passear. Ele chega descontraído, camisa de manga curta, como os passos que dá, entra no seu pequeno escritório mesmo ao lado do portão, numa pequena casa, e por lá fica algum tempo.
Passado esse tempo, que é sempre algum, abre a porta e começa a sua caminhada pela escola. Caminha devagar, mas com passos certos e seguros do caminho e do lugar. Dá a volta à escola, sabe o que ver, já conhece o que vê. Gordinho, baixinho, lá vai devagarinho fazendo o caminho que já sabe de cor.
Não sei já quantas vezes o fez, não sei há quanto tempo anda ali - nunca lhe perguntei. Mas diria que anda há eternidades. Uma, talvez, que basta ser sozinha para já ser demasiada. Cumprimenta os professores, os alunos, as contínuas, as senhoras da limpeza. Até os gatos. Parece dar-se bem com toda a gente - até com quem não é.
Mas, para fazer o que ele faz, caminhar e cuidar sozinho daquele lugar tão grande, também tem de dar-se bem com ele próprio. É quando toda a gente vai que ele fica mais acompanhado. Os gatos não vão embora. Mas nem são eles que lhe fazem mais companhia. Diria que é ele, desacompanhado, que se aproxima dele, que fala com ele, que pensa com ele. Até ser dia.
A escuridão não o assusta. Eu diria que custa fazer o que ele faz. Mas, enquanto quase toda a gente está a dormir, ele tem o mundo inteiro só para ele. Aquela escola. Aquela cadeira naquele escritório naquela pequena casa. Quase uma casota, um lugar de máquinas, computadores, papéis e talvez uma televisão. E ele um cão de guarda, vigilante. Como um super-herói. Um Rorschach sem a máscara e sem a dor. Atento ao mundo da noite, aos pesadelos, aos bandidos e aos gatos. Tem uma lanterna. De vez em quando, já noite, vejo, da minha varanda, uma luz a dançar nas paredes da escola. É dela, da lanterna, a luz que dança. E ele, o segurança, a mão que a controla.