Opinião

Cinema | Fantasmas do Natal presente

24 dez 2019 20:00

A azáfama na rua não deixa dúvidas de que são seis da tarde na noite de Consoada. Ajudava, como recurso de estilo, dizer que a neve caía com parcimónia e que a alvura emprestava alguma beleza e crédito ao espírito da época. Mas é mentira.

Por estas bandas, raramente neva e quando tal acontece, às dez da manhã já não há branco em lado algum. Mas está um frio terrível, isso não é mentira nenhuma. Equilibro o copo de vinho no parapeito da varanda, levanto as golas do casaco e, levemente inebriado pelo fumo do cigarro, atento nas manobras dos carros que chegam apinhados de gente e de embrulhos.

Gente embrulhada em roupa quente que carrega objetos multiformes embrulhados em papéis coloridos. Gente apressada. Alegre ou conformada. Guinchos de crianças empolgadas com a expectativa. No café ao fundo da rua, duas ou três mesas estão ocupadas por grupos que apressadamente esvaziam o conteúdo de garrafas de mini. Umas atrás de outras.

A espaços, um telefone toca e alguém se afasta da mesa para atender, regressando alguns segundos mais tarde enquanto dispara para o aparelho: “sim, sim... estou a ir...”, apenas para se sentar de novo quando já nova rodada aguarda.

Ah, nada como o espírito do Natal. Acabo o cigarro e atiro a pirisca para a rua, hesitando em não acertar nos miúdos do segundo direito do prédio em frente, que atravessam a estrada. O olhar de ódio que me dirigem é recíproco. “C&$&!#% do velho!”

É certo que assim que se despacharem do jantar saem para a noite e depois regressam às seis ou sete da manhã, completamente embriagados, e eu vou acordar com o barulho, se antes a próstata não me obrigar a visitar a casa de banho outra vez. Aliás, nos dias de hoje, o espírito de Natal tem destas coisas surpreendentes.

No outro dia, no mini-mercado do bairro, uma senhora comentava algo sobre não comer bacalhau na noite de Consoada. Algo a ver com o Pauleta e com as vacas. Como se o rapaz tivesse culpa de ser açoriano. E a Amazónia?! Mas o que que é que a Amazónia tem que ver com o bacalhau? E mais aquela conversa sobre como era importante dar atenção à Greta.

Não é a primeira pessoa a falar assim despudoradamente da greta. É algo que me ultrapassa completamente, a falta de cuidado desta gente nova ao falar sem freios de coisas que deviam ser privadas. No café, parecem desistir de adiar o inevitável e despedem-se calorosamente, com votos de Boas Festas, etilicamente amplificados.

Lembro-me do vinho que, entretanto, já está gelado e percebo que é a minha dica para abandonar a varanda. Sendo noite de Natal, com sorte deve passar num canal qualquer a repetição do Assalto ao Arranha-Céus. Vou para dentro, sentar-me em frente ao termo-ventilador e aquecer uma lasanha no microondas, que isto, aqui fora, não está para filmes. “Yippee-ki-yay, motherfucker!”

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico