Opinião

Onde o céu se une à terra

24 nov 2019 19:06

Bostofrio é uma pequena aldeia do concelho de Boticas. Não, não vem esta coluna a propósito da exploração de lítio, da ganância das corporações, nem da ambição desmedida dos políticos ou da revolta das populações.

Nem tão pouco vem tecer elogios à posta mirandesa ou ao vinho transmontano. Há outros motivos para lembrar os que estão para lá do Marão. Bostofrio é também o título do filme que Paulo Carneiro realizou e se encontra em exibição numa mão cheia de salas do País.

Uma estreia comercial que o autor pensou nunca vir a ser possível, quer pela dimensão pessoal do projeto e a abordagem artística, quer pelos constrangimentos orçamentais. O percurso de Bostofrio pelo circuito de festivais, onde se apresenta como documentário e tem sido bem recebido, veio apaziguar os receios do realizador e provar que, também fora do ecrã, há histórias com final feliz, especialmente para os espectadores, que têm oportunidade de assistir a este filme.

Diz a sinopse curta que, “numa aldeia remota chamada Bostofrio, um jovem cineasta quebra a lei do silêncio para descobrir a história do seu avô, através de uma série de entrevistas estranhas e engraçadas que revelam os segredos e meias verdades que são o tecido de um Portugal rural”. Mas o Bostofrio de Paulo Carneiro é muito mais do que um documentário acerca da demanda pela figura do homem que, sendo pai do pai do realizador, nunca o reconheceu publicamente.

Marcas de uma época onde os segredos eram guardados coletivamente e a comunidade se regia por regras castradoras, mas aceitava os comportamentos libertinos, desde que ocorressem com discrição. É nesta dualidade, mais do que nas paisagens intermináveis em que a serra parece tocar o céu, que primeiro se reconhece o subtítulo de Bostofrio: où le ciel rejoint la terre.

Assim mesmo em francês. É o conviver das convenções católicas com o egoísmo humano, no que se entende ser a vida dura do campo, no tempo da ditadura. Ou na frase de Teixeira de Pascoaes, que fecha o filme e de alguma forma o resume: “Deus e o demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal”.

Neste Bostofrio, que Carneiro dedica ao pai, há poesia e há cinema e há uma fotografia fantástica, assinada por Pedro Neves. Há, acima de tudo, o desejo de ser disruptivo, mesmo quando as opções do cineasta parecem conservadoras, como a de utilizar, quase em exclusivo, planos fixos. O próprio admite a intenção de provar que é possível fazer um filme de mais de uma hora, com estes planos e onde os diálogos e a paisagem são suficientes para o libertar do enfado.

E o resultado é belo. Muito belo. E catártico, não só para o autor, que se torna protagonista, mas igualmente para o espectador, que não consegue ficar indiferente a esta forma comprometida e intensa de fazer cinema.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990