Opinião
Democracia e simplismo
Na próxima eleição, queiramos todos ler o manual inteiro — mesmo que custe mais do que deslizar o polegar num ecrã
Quando o mundo se torna opaco, preferimos o cartaz luminoso à letra miudinha — e 18 de Maio confirmou a regra. A AD (32,1%) venceu, mas longe de uma maioria absoluta; o PS caiu para 23,4% e, sobretudo, o Chega saltou para 22,6%, cristalizando 1/3 do eleitorado em torno de respostas instantâneas para dilemas de equações diferenciais — a democracia em modo FAQ.
A ascensão da extrema-direita não nasceu de um qualquer ADN lusitano adormecido; nasceu da procura feroz por mapas de bolso num continente onde o GPS ora falha, ora nos manda dar meia-volta na próxima rotunda. O Chega descobriu que, perante a inflação do vocabulário técnico, basta vender um conjunto de palavras-chave: taxas, corrupção, imigração, subsídios.
É um produto político com manual de instruções de uma página. Entre 2021 e 2023 o PIB português cresceu 6,8% e depois 2,3%, o segundo arranque mais rápido da UE pós-pandemia, mantendo-se previsões de voltar a bater a média europeia em 2025. O desemprego estabilizou nos 6,4% — quase pleno emprego para padrões históricos. Paradoxo: apesar deste trajeto, parte do eleitorado sente estagnação.
Em campanhas, percepções ganham a dados de Excel e o país não se sabe ver ao espelho. Os imigrantes são 9,8% da população, um dos rácios mais baixos da Europa Ocidental. Ainda assim, a narrativa dominante pinta vagas de estrangeiros a “roubar” empregos numa economia onde faltam motoristas, enfermeiros, engenheiros e ladrilheiros.
A aritmética é cruel: a geração dos anos 1990 não fez filhos suficientes; aumentar salários por decreto não cria portugueses; e nos sectores transacionáveis só há margem para pagar mais se a produtividade subir — ou se aceitarmos margens nulas num mercado global que não pratica caridade.
Habitação, educação, saúde: três mercados com falhas gritantes. A construção sofreu um sub-investimento crónico; professores fogem porque o retorno emocional já não paga a hipoteca; hospitais disputam especialistas como clubes de futebol em final de época. Aqui nem laissez-faire puro, nem planificação soviética, precisamos de políticas onde o Estado corrija externalidades (zonamento, bolsas de mérito, contratos-programa) sem matar o oxigénio competitivo.
Estudos da OCDE mostram um aumento continuado da quota dos maiores players, empurrando preços para cima e inovação para baixo. Falta-nos uma política de concorrência que nem seja inimiga da escala, nem permita a gritante acumulação de mercado. Problemas multivariados exigem partidos habituados a equações, não a slogans e percepções.
A integração europeia — desde a união bancária à partilha de dívida climática — é um quebra-cabeças de vinte e sete peças que não cabe num tweet. O centro-esquerda e o centro-direita, com todas as suas fragilidades, têm mecanismos para dialogar com esta complexidade. Mas o eleitor médio, cansado, corre para a secção dos “auto-ajuda” políticos: soluções detox de 7 dias que prometem refundar o país.
Portugal cresceu, exportou e pagou a dívida mais depressa que muitos vizinhos, mas decidiu premiar quem oferece atalhos para o desalento. Talvez seja altura de lembrarmos que a história raramente perdoa populistas a prazo; premeia sociedades que aprendem a ler instruções longas.
A crónica de hoje fica como convite: na próxima eleição, queiramos todos ler o manual inteiro — mesmo que custe mais do que deslizar o polegar num ecrã.