Opinião

Dicionário improvisado XXIV 

29 fev 2024 16:05

E o rei, magnânimo, manda espalhar por todo o lado a notícia de que está orgulhoso e agradecido

Amizade 
A criança sente-se responsável pela árvore que plantara na escola. Todos os dias a visita durante a hora do recreio e faz-lhe companhia; conta- -lhe assuntos seus, incluindo segredos, porque é isso que fazem os amigos; mostra-lhe desenhos de coisas que ela nunca vira, como o mar ou um avião; confessa-lhe que gostaria de a levar a nadar no mar e a passear de avião; oferece-lhe um guarda-chuva, para que ela não se molhe; traz-lhe bolachas e gomas; empresta-lhe o seu relógio, para que ela conte o tempo que falta até à hora do recreio. A árvore nunca responde; mas a criança não se aborrece com isso, e regressa sempre. 

Conformismo 
O velho está sentado num banco de jardim. Olha para dois adolescentes que estão no banco em frente e se beijam. O velho diz, numa voz baixa mas audível: «Por mais beijos que se dêem, nunca se consegue vencer a solidão.» Os adolescentes não ouvem, ou fingem que não ouvem, ou ouvem e não se importam. 

Inconformismo 
O adolescente está sentado num banco de jardim. Olha para dois velhos que estão no banco em frente e se beijam. O adolescente diz, numa voz baixa mas audível: «Por mais beijos que se dêem, nunca se consegue vencer a solidão.» Os velhos não ouvem, ou fingem que não ouvem, ou ouvem e não se importam. 

Vassalagem 
O rei ordena que no interior de cada casa do seu reino deva existir, no local de maior destaque, um retrato de si próprio. Para isso, mobiliza todos os artistas para trabalharem na reprodução da obra oficial, da qual são assim criadas milhares de cópias; o próprio exército assegura a distribuição dos quadros por todas as aldeias e vilas, evitando distrações e recusas, pois a ordem é clara e deve ser seguida sem excepções. Chega então o dia em que, finalmente, todas as casas exibem nas suas modestas salas o imponente e imaculado retrato real. E o rei, magnânimo, manda espalhar por todo o lado a notícia de que está orgulhoso e agradecido (na altura ainda não se usa a expressão grato). Contudo, nos dias seguintes começam a surgir reportes de uma situação desagradável: a praga de moscas que desde sempre martiriza o reino sentira-se atraída pela brancura do retrato real; e nele pousam, passeiam e deixam as suas marcas.

Ao saber que a sua preciosa imagem está a ser conspurcada por excrementos de moscas, o rei fica furioso e ordena que o exército castigue qualquer pessoa que seja encontrada na posse de um retrato poluído. E assim acontece, mas rapidamente se constata que as moscas não se intimidam e prosseguem o seu hábito ancestral; as manchas continuam a acumular-se na brancura real. Humilhado, o rei pondera mandar retirar todos os retratos; mas é aconselhado em sentido contrário, pois o que pensariam as nações inimigas de um rei que se rende perante um exército de moscas? É então que tem a ideia salvadora; e por todo o reino é transmitida uma mensagem real informando que sua majestade é o rei mais poderoso de todas as terras e de todos os tempos, pois até as insignificantes moscas lhe prestam vassalagem de forma ostensiva e marcante.