Opinião
Novo Ano
As nossas lembranças são misturas de tempos
O Novo Ano chegou.
Gonçalo M. Tavares, na sua habitual crónica na Revista E do Expresso, a 22 de Dezembro escreveu: “perto do final do ano, o cronómetro começa a acelerar em direcção a um novo calendário”.
Mas 2023, que acaba de nos deixar, transforma intensamente esta dimensão de tempo, porque ele não é só cronológico.
É um tempo de uma existência globalmente difícil, em que o sofrimento colectivo não pode, nem deve ser lido apenas como uma reacção individual a um evento externo.
Temos vivido um tempo de uma existência global que coloca a nossa vida em suspenso, sem tempo nem espaço interno, para a construção de nós próprios.
Como sabemos, as formas de sofrer são indissociáveis do ambiente cultural e social que vivemos.
A nossa própria história não é linear.
As nossas lembranças são misturas de tempos.
Em 2023, saímos de uma pandemia e passámos a assistir a um desfilar de guerras e conflitos intermináveis sem um cessar-fogo possível, apesar dos apelos internacionais constantes, com as democracias paulatinamente a deteriorarem-se um pouco por toda a parte e Portugal incluído, a crise climática cada vez com mais força e, isto tudo somado, a criar um clima de angústia e inquietação global, face ao qual não conseguimos ficar indiferentes.
Atormenta-nos a alma e o coração, dentro e fora das consultas.
A ansiedade instala-se.
Dizia-me António (nome fictício) na nossa última sessão do ano: “sabe, de repente, foi a minha criança que emergiu violentamente ali à mesa. Perceber o meu não lugar, a minha não existência numa família totalmente disfuncional. Optei por ficar em silêncio. Queria agora ser o adulto capaz de dar colo à minha criança também ali sentada à mesa e que tantas vezes falamos aqui. Pensei em si. Pensei nas nossas sessões e percebi o meu novo nascimento.”
Ao longo dos vários meses de 2023, dei por mim a proteger-me progressivamente das notícias diárias que, ininterruptamente, entram pelos ecrãs adentro.
A guerra em directo, as catástrofes em directo e a ausência de interlocutores lúcidos capazes de as mediar e ajudar a pensar e a significar.
O chegar a casa já trazia no meu coração e no meu espaço mental, a escuta atenta e o acolhimento das notícias que as pessoas com quem trabalho carregam, quer do mundo real, quer de si próprias e do seu mundo interno.
Por outro lado, a partilha entre pares trouxe o constatar de um sofrimento comum: pessoas que nos chegam mais desesperançadas, mais fragmentadas, em desamparo e abandono de si e dos outros, fazendo uso de defesas muito primitivas como, por exemplo, o recurso a comportamentos auto-lesivos de diferentes formas e feitios, como estratégia única possível contra uma dor, na maioria das vezes, sem nome.
Uma dor que é da ordem do indizível, do irrepresentável.
Dissociações, fragmentos, que são do domínio do trauma, de um tempo que não começa, de um presente morto e inanimado que se impõe, onde pensar o impossível se faz urgente, como nos disse recentemente Felícia Knobloch, psicóloga clínica e psicanalista, nas Jornadas da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica, em Lisboa.
No seu livro O tempo do traumático (2022) recentemente reeditado no Brasil, a autora traz-nos a ideia de que o trauma nos convoca clinicamente a um outro modo de pensar e agir.
A vivência psicológica actual mostra-nos isto diariamente e o desafio do nosso trabalho, assim como o compromisso e a responsabilidade para com a pessoa que temos à nossa frente, aumentam na mesma razão.
Como enfatiza Felícia Knobloch ao longo do livro, o tempo do traumático é um presente absoluto que se vincula ao tempo do morrer, por ser justamente quando a própria passagem desse tempo não se dá.
Fixa-se em determinado “espaço” no corpo e na forma de viver.
Aparece, não como linguagem verbal, mas como sintomas, silêncios, acções, repetições e transmissões na contra-transferência do próprio psicoterapeuta (Berenstein, Laurino, Weintraub, 2023).
O ano de 2024 chegou e com ele também muitas interrogações.
A possibilidade da continuidade deste tempo em suspenso, em que a regularidade e a constância parecem ter deixado de ser um organizador psíquico do Eu, impõe outros desafios terapêuticos, outras linguagens, outras forma de escuta das entrelinhas de cada Ser, capazes de gerar movimentos sanígenos, transformadores e de acolhimento necessários para trazer esperança e capacidade de vida.