Opinião

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9 jul 2020 13:44

"Hierarquizando as suas preferências no que toca a ocupações de tempos livres, 7 em 10 eram passadas ao computador."

Pode não parecer, mas metade de mim já pertence ao século passado. Atravessei meia vida em direto e a cores. Ou estava lá ou não estava. Não havia lives, vídeo chamadas, shazams ou youtubes, muito menos podcasts e televisões que permitiam marcha atrás. Se queria ouvir aquela música na rádio, tinha bom remédio, esperar sentada. Valia-me o Top + ao sábado à tarde, mas era dia de limpezas e tinha de dar ao chinelo. O mundo não estava dentro de casa e o que acontecia, acontecia normalmente fora das quatro paredes, tirando o Festival da Canção e os Jogos sem Fronteiras. Ok, havia também as Marés Vivas, O Justiceiro, o ALF, o McGyver ou Beverly Hills... Mas era lá fora que a magia acontecia, no contacto com os outros e com a natureza. Os cheiros, os maneirismos, os pormenores, o toque, os joelhos esfolados e o fato treino roto.

O telefone tocava à hora combinada e a partir daí cumpria-se o plano à risca, não havia como avisar do contrário! Sabíamos esperar, não havia gratificação imediata e tínhamos de ser, ou tentar ser, pacientes. A vida punha as nossas funções executivas no lugar e crescíamos com essa ginástica mental.

Agora está tudo à mão de semear. Temos tudo (ou quase tudo) sem sair de casa. Não há espaço para grandes frustrações ou para gerir nãos.


Os miúdos com quem trabalho acham quase impossível eu ter sobrevivido à era pré ecrãs smart. Não imaginam sequer a vida nessas condições e nenhum gostaria de passar por essa experiência. Ainda há pouco um me dizia que não tem saudades de sair de casa. Aqui tenho o meu spot. Estou a dois passos da cozinha, consigo ver TV, aceder ao telemóvel e ao PC e ter tudo a carregar ao mesmo tempo! Hierarquizando as suas preferências no que toca a ocupações de tempos livres, 7 em 10 eram passadas ao computador. Salvou-se a bicicleta e as necessidades básicas comer e dormir.

E o resto? O resto que não se liga à corrente?


Como se costuma dizer, são frutos dos tempos. Os dispositivos eletrónicos trouxeram facilidade, rapidez, comodidade e outras formas de ocupar o tempo. Tudo certo, se utilizados com conta, peso e medida. Na realidade, a televisão, o telemóvel, o computador, o tablet têm sido bons amigos nos últimos meses. Ligados à net abrimos caminho até onde é preciso, mas atenção que há quem não tenha ainda carta de condução e precise de orientação para não passar dos limites. A criançada por exemplo, não deve conduzir estes aparelhos ao Deus dará sem regras. Too much é too much. Assim como nós (gente grande) temos filhos, flores e tachos, pó, roupa, caminhadas, fotografias e trabalho, os miúdos continuam a ter livros para folhear, puzzles para montar, desenhos para pintar, corridas para fazer, rotinas académicas para manter, responsabilidades para cumprir, mimos para receber e sensações que continuam a precisar de ser experienciadas em pleno com os cinco sentidos.


Conhecem aquela sensação de quem não dança há muito tempo e se sente um trambolho na pista? Assim vislumbro alguns miúdos no regresso às conversas lado a lado, em grupo e em verdadeira interação social.

Desliguem-nos da ficha sempre que possível e devolvam-nos ao mundo real. Reduzam a luminosidade dos ecrãs ao fim do dia. Definam prioridades. Optem por mimos e atenção. Antecipem, não pensem só no hoje. O futuro é um monte de agoras.