Opinião
País em chamas
Não pensemos só nas feridas físicas, mas curemos igualmente as emocionais
Todos os anos parece que assistimos ao mesmo cenário de flagelo com os incêndios (em Portugal e no mundo). Às vezes questiono-me: ainda há floresta em Portugal para arder?
Mais uma vez assistimos a cenários dantescos de desolação como estamos a ver na ilha da Madeira. E antes de pensarmos só em contabilizar as perdas materiais, temos de olhar para a perda humana. A perda da vida dos próprios e os efeitos perversos das perdas nas famílias (seja perda de familiares, de bens, animais ou casas).
O que fica depois disto? Muito trauma para lidar e lutos difíceis de superar. Como erguer uma vida inteira depois das cinzas? Como aceitar muitas das vezes quando essas perdas tiveram mão criminosa e não parece haver nunca justiça suficiente para reparar a perda?
Nestas alturas do ano lembro-me sempre do caso de uma menina de 9 anos que atendi há cerca de 10 anos também no Verão. Tinha medo do fogo e de deixar a mãe sozinha em casa. No Natal anterior a casa dos vizinhos tinha ardido (fogo posto ou acidental ninguém sabia). Os vizinhos felizmente não estavam em casa nesse dia. A casa dela era rodeada por pinhal e ela vivia em pânico sob a perspetiva de perder a mãe num fogo. A ironia do destino é que o pai desta menina era bombeiro voluntário e ela não tinha medo de perder o pai num fogo pois achava que ele era invencível.
Como a ajudei? Na verdade, não foi uma intervenção difícil. Foi basicamente capacitar a menina para readquirir a sensação (ainda que ilusória) de controlo. O pai ensinou-a a apagar fogos no quintal e levou-a para ser bombeira voluntária e a mãe ensinou-a a ligar para o 112 em caso de necessidade. Progressivamente perdeu o medo.
Porque vos conto estas estórias e o que tem a ver com o que assistimos atualmente? O trauma aparece sob várias formas e nasce da mesma raiz: o medo. Esse medo que nos protege do perigo, mas muitas das vezes se cola a nós como uma segunda pele. E ficamos com resquícios dele em nós, a contaminar com mais ou menos força o nosso dia-a-dia.
E nesses momentos é necessário passar por um processo de superação do medo, de reaprendizagem do que é estar seguro no mundo e às vezes na nossa própria pele. Não pensemos só nas feridas físicas, mas curemos igualmente as emocionais.
Por último queria deixar-vos com a seguinte mensagem: sim, é possível renascer das cinzas.
Texto escrito segundo as regras do novo Acordo Ortográfico de 1990