Opinião
Quase sem darmos por isso
É desoladora a forma como nos podemos maltratar, como disso nos conseguimos abstrair, e de como acabamos até por conseguir esquecer o horror
É bem verdade que nos habituamos a (quase) tudo. O que primeiro nos surge como fora do tempo e do modo, estranho, sem solução, assustador, desesperado, ou impossível de superar, vai aos poucos perdendo intensidade e contorno, encontra caminho para entrar na rotina, instala-se roubando algum espaço no pensamento e, quase sem darmos por isso, torna-se parte do nosso dia-a-dia.Não deixando de existir, torna-se, porém, suficientemente conhecido para deixar de ser sobressalto e, sem dar por isso, continuamos a rotina dos dias conforme eles se nos apresentam.
Quando das nossas dores e mágoas mais fundas se trata, o assunto é privado; elas vêm certamente para ficar, e o irem-se esbatendo significa apenas que o tempo lhes encontra o espaço próprio onde permanecerão para sempre, num crescendo de tranquilidade que permite uma tristeza mais mansa e a possibilidade de conhecer aos poucos uma outra parte de nós, até então desconhecida.
Há depois as zangas mais ou menos difíceis ou prolongadas, as grandes desilusões, o fracassar de um projecto importante, ou o confronto com alterações indesejadas que, sendo sem dúvida pessoais, naturalmente envolvem quem está mais próximo, seja ao nível familiar, profissional ou social.
São as palavras contundentes, os recomeços difíceis, a necessidade de resiliência ou de mudança de planos que abalam o bem-estar, trazem a dúvida, e alteram a nossa rota; mas também isso deverá seguir o caminho próprio do apaziguamento, da solução, do recomeço, e da descoberta de um rumo diferente que se venha a provar ser, afinal, o rumo mais certo. Não se pode ignorar que aconteceram ou a marca que fizeram, mas deixarão também de ser sobressalto para nos deixar voltar à rotina dos dias conforme eles se nos apresentem.
E há depois o Mundo, para além do nosso pequeno mundo, e o que por lá de pior acontece. Esse mundo que espreitamos por janelas escancaradas por onde vemos o que uns fazem aos outros, horrorizando-nos, indignando-nos, discutindo-o, tomando partido, ouvindo opiniões, olhando as últimas imagens da tragédia; e depois menos um pouco; e a seguir menos ainda; e depois olhamos as notícias com a normalidade de quem as vê todos os dias; por fim, a tragédia dos outros vai perdendo intensidade e contorno, encontra caminho para entrar na nossa rotina, instala-se, roubando algum espaço no pensamento, e quase sem darmos por isso torna-se parte do nosso dia-a-dia.
Ao longo da história, é desoladora a forma como nos podemos maltratar, como disso nos conseguimos abstrair, e de como acabamos até por conseguir esquecer o horror. É esta a nossa normalidade como espécie: praticamos a intolerância, o uso da força, e a crueldade em nós próprios, apenas porque encontramos razões históricas, sociais, e políticas, para isso.
Mas disto, nunca deveria ser desejável, nem possível, esquecermo-nos.